José Martins, da redação.
As classes dominantes brasileiras são notoriamente conhecidas por ser uma das mais mentirosas em todo o mundo. Todo o mundo sabe disso. Mas qual é a sua principal mentira? Disparadamente, imbativelmente, a fantasiosa ideia que o Brasil é um grande produtor de cereais. Uma grande potência agrícola mundial. Pouca gente discorda disso.
Como a burguesia agraria brasileira explica esse grande feito? Simples: alta produtividade! O festejado agronegócio brasileiro seria uma atividade econômica que registra elevadíssima produtividade frente aos principais produtores mundiais de alimentos. Pouca gente consegue discordar dessa mentira ampliada (depois da grande produção, a elevadíssima produtividade).
Querem mais? Além de produzir mais e melhor que os outros concorrentes mundiais, o agronegócio brasileiro conseguiria ser, por isso mesmo, um grande preservador do meio ambiente e das matas brasileiras. É o que eles dizem. Alguém discorda?
Por questão de método, comecemos por essa surpreendente revelação que o agronegócio brasileiro é um grande agente de preservação da natureza.
Veja, por exemplo, o que disse a respeito, a pouco menos de uma semana, um prestigioso e tradicional ideólogo da parasitária propriedade fundiária agrícola nacional.
Em uma matéria denominada Brasil, país poupador de terras, o jornal “O Estado de São Paulo” procura demonstrar que, ao contrário de ser uma indicação de grande impotência produtiva, a elevadíssima ociosidade das terras agriculturáveis para a produção de alimentos no Brasil se deve unicamente a uma bondade muito grande dos latifundiários do agronegócio, preocupadíssimos, segundo o jornal, com a preservação do meio ambiente e das matas nativas nacionais.
A sua forma direta e didática substitui com vantagem dezenas de teses acadêmicas que procuram de forma rebuscada e mistificadora demonstrar o mesmo argumento e defender os mesmos interesses de classe expostos neste ensaio jornalístico.
O jornal considera um argumento irrefutável dessa bondade natural da burguesia agrária brasileira reunida na Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) o fato que no país a produção agrícola de grãos ocupe apenas 65,91 milhões de hectares, aproximadamente 7,6% do território.
A “poupança de terras” a que se refere o jornal se formaliza em milhares de latifúndios desocupados, improdutivos, espalhados por todas as regiões do país. Existe alguma outra forma de destruição ambiental mais eficiente do que a eternização desses latifúndios improdutivos e grandes poupadores de terra?
Há que se distorcer o sentido dessa realidade parasitária facilmente observável na paisagem rural brasileira. O jornal faz essa distorção. Informações da agência espacial estadunidense (Nasa) à mão, este zeloso defensor da moral e dos bons costumes da burguesia agrária brasileira conclui imediatamente que “esses números são muito mais compatíveis com os objetivos de conservação ambiental do que os encontrados na maior parte do mundo, incluídos os países mais desenvolvidos e apontados, costumeiramente, como os menos devastadores”.
Mas quem são esses irresponsáveis e grandes “gastadores de terras” no mundo? O próprio jornal nos informa: “A informação da Nasa, divulgada no fim de dezembro, foi pouco difundida e escassamente comentada no Brasil. Nenhuma pessoa honestamente interessada no assunto deveria, no entanto, desconhecer os dados e negligenciar as comparações. A agricultura ocupa entre 20% e 30% da área na maior parte dos países, de acordo com o relatório, e em algumas economias importantes a parcela usada na produção rural é muito maior. A proporção fica entre 45% e 65% na maior parte da União Europeia, em 18,3% nos Estados Unidos, em 17,7% na China e em 60,5% na Índia. Na Dinamarca a área cultivada corresponde a 76,8% do território. No Reino Unido, a 63,9%. Na Alemanha, a 56,9%.”
Resumo da ópera: o que indica objetivamente uma grande preguiça histórica da burguesia brasileira para trabalhar a terra e produzir alimentos suficientes para alimentar sua população transforma-se, por um passe de mágica ideológica, em uma grande virtude. Como?
Confundindo a danosa ociosidade e não utilização da terra agriculturável para fins produtivos, alimento para o mercado interno, como uma forma virtuosa de preservação ambiental.
A flagrante comprovação de elevadíssima capacidade ociosa de centenas de milhões de hectares ociosos de latifúndios improdutivos (pecuária extensiva, etc.), acompanhada de uma gigantesca destruição dos rios e florestas do imenso território brasileiro – transforma-se de repente em lição moral de responsabilidade social e de preservação ambiente para países “atrasados” como a Dinamarca, o Reino Unido, Alemanha e outros “delinquentes” da ordem agrícola e ambiental mundial.
O jornal condena esses “irresponsáveis” só porque eles consideraram historicamente – com muitas guilhotinas e revoluções sociais – que a verdadeira preservação ambiental começa necessariamente pela melhor e mais inteligente utilização de toda a terra disponível para se produzir cereais em grande abundância para o mercado interno, quer dizer, para o consumo e reprodução da classe trabalhadora (produtiva). Vide Smith, Ricardo, etc., cujas lições foram fielmente seguidas por esses “gastadores de terras”.
Na famosa periodização do desenvolvimento econômico de Smith, o comércio exterior deve ser a última (e não muito importante) etapa do desenvolvimento econômico nacional. Por seu lado, em seus últimos escritos, Ricardo pregava a nacionalização (estatização) da terra para neutralizar a renda fundiária e destravar o pleno desenvolvimento econômico. Tudo em nome do aumento da produtividade sistêmica e diminuição do custo de reprodução da força de trabalho.
Esses ensinamentos foram mais ou menos seguidos por algumas burguesias nacionais, exatamente aquelas que correspondem historicamente às atuais potências econômicas e dominantes na ordem imperialista mundial. Não com tanta radicalidade, por razões evidentes da própria sobrevivência da burguesia como classe dominante e monopolista do poder estatal.
Nas revoluções burguesas a negação se interrompe nela mesma. Revolução inglesa, revolução francesa, restauração Meiji no Japão, guerras camponesas na Alemanha, unificações nacionais na Itália, Escandinávia, e outros poucos pontos geográficos de inteligência para defender os próprios interesses nacionais.
A chamada “guerra civil americana” (leia-se, dos EUA) foi uma das mais importantes e mais radicais aplicações daqueles ensinamentos de Smith e Ricardo. A burguesia yankee do Norte trabalhou historicamente. Ganhou a guerra do Sul escravagista e agroexportador de tabaco, algodão, etc. Referindo-se a essa guerra civil, Darcy Ribeiro dizia que o Brasil é os Estados Unidos em que o Sul que ganhou a guerra. Bingo.
Para concluir esse assunto devemos voltar ao ponto inicial e mais importante, mais de fundo no problema agrário brasileiro. Afinal, como os ideólogos do agronegócio brasileiro explicam o fato que o país ocupe produtivamente uma parcela tão pequena da superfície agriculturável nacional para a produção de alimentos e ao mesmo tempo consegue ser “uma potência agrícola mundial” ?
A matéria do jornal O Estado de São Paulo tem a resposta na ponta da língua: “Embora as lavouras ocupem uma pequena porcentagem do território brasileiro, o País é uma potência agrícola e um dos líderes no comércio global de vários produtos. Quem acompanhou a evolução do agronegócio desde as décadas finais do século passado entende facilmente como esse quadro se tornou possível. A explicação principal está nos ganhos de produtividade, centrados, no caso brasileiro, no volume produzido por hectare. Isso depende da fertilização e da preservação da fertilidade do solo, assim como das técnicas de manejo da terra e também do melhoramento e da seleção das plantas. Graças a esses avanços, durante um longo período foi possível aumentar muito mais a produção de vários grupos de lavouras do que a superfície cultivada. Em outras palavras, a agricultura brasileira tornou-se uma atividade poupadora de terra. A produção de grãos é o exemplo mais visível dos ganhos de produtividade”.
Nada melhor para verificar a veracidade de um discurso do que confrontá-lo com a dura realidade dos fatos. E de números confiáveis. É o que faremos em nosso próximo boletim a ser postado ainda nesta semana. Aguardem.
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