quinta-feira, outubro 31, 2024
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Cingapura: a realpolitik Obama/Trump em processo

A chamada “reunião histórica” em Cingapura, dia 12 (terça-feira), entre o presidente dos EUA, Donald Trump e o roliço Kim Jung-un, líder da Coréia do Norte, foi uma continuação perfeita da Cúpula dos 7 (G7) da semana passada.

Cingapura foi uma literal continuação de Quebec. E mais uma demonstração de perfeita coerência (para não falar abusivamente de racionalidade) da nova política externa do grande desmantelamento executada pela maior potência imperialista mundial. Muito importante: uma nova política iniciada , como veremos abaixo, bem antes do governo Trump

Da mesma maneira como, na semana passada, os participantes do moribundo G7 foram tratados por Washington, em Cingapura repetiu-se o total desprezo do governo estadunidense pelos seus tradicionais parceiros e pelas instituições internacionais que marcaram (ou parece que ainda marcam, para alguns desavisados) o arcabouço das antigas relações internacionais do pós-guerra.

É notável que em um encontro de tal importância não tenha havido nenhum representante da Organização das Nações Unidas (ONU), nem do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). Nem mesmo alguém da Agência Internacional de Energia Atômica (sigla IAEA, em inglês), que, supõe-se, deveria ser a “responsável técnica” pela observância e cumprimento do acordo de desarmamento nuclear coreano firmado na reunião.

Na “histórica reunião” não havia ninguém mais que o presidente dos EUA e o líder norte-coreano sacramentando um assunto crucial para a ordem mundial. Principalmente para poderosas nações asiáticas e adjacências, como Japão, China, a própria Coréia do Sul, Rússia, Índia, etc. Nenhuma delas foi convidada, nem mesmo como meras observadoras do encontro. O big stick imperial funciona para todo mundo.

Tudo muito diferente, por exemplo, da assinatura do tratado de não proliferação atômica com o Irã, quando os EUA ainda convidava algumas damas de honra para acompanhar suas ações. Esse acordo nuclear com o Irã foi alcançado em julho de 2015, após quase 20 meses de negociações, entre o governo do Irã e, oficialmente, um grupo de potências internacionais, liderado pelos EUA.

O chamado grupo P5 + 1 – cinco membros do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha – comprometeu-se a encerrar as sanções ligadas ao programa nuclear iraniano, em troca de seu desmantelamento.

É exatamente esse acordo que o governo dos EUA resolveu romper unilateralmente, neste ano, gerando grave ruptura das regras mais elementares de convivência entre as nações e do próprio direito internacional. O processo do desmantelamento da amizade com os parceiros do pós-guerra se aprofunda.

Entretanto, nem mesmo esse importante fato ocorrido em Cingapura foi destacado, e muito menos condenado, pelos analistas internacionais e redatores da mídia imperialista global, como Le Monde, The Economist, Washington Times, Deutsche Welle, etc.

Limitam-se a discutir o acordo EUA/Coréia do Norte como um jogo de guerra qualquer entre duas excêntricas figuras chamadas Donald Trump e Kim Jong-un. Uma disputa entre dois jogadores: quem ganhou ou quem perdeu.

Quando não é isso ou outras curiosidades pessoais sobre os dois espalhafatosos personagens existe também outro mais danoso esporte favorito destes órfãos ideólogos da “pax americana” do pós-guerra: isolar no irresponsável, desqualificado e imprevisível Trump toda a responsabilidade de ruptura do governo dos EUA com a ordem internacional. Com raríssimas e elogiáveis exceções, como veremos mais abaixo.

Assim, a compreensão dos fatos fica ainda mais prejudicada. Talvez por isso as análises sobre as consequências do encontro de Cingapura, quando existem, não possam trata-las como parte daquele grande desmantelamento da ordem imperialista do pós-guerra pelas classes dominantes estadunidenses e seu governo em Washington.

Mas é muito importante demonstrar que esse grande desmantelamento da velha ordem iniciou-se praticamente na esteira do grande choque cíclico de 2008/2009. Exigências materiais. Neste processo, a política externa de Donald Trump é uma perfeita continuidade da política de Barack Obama. Não se trata de uma aleatória política de governo, mas de Estado.

Esta continuidade de um mesmo processo por dois sucessivos presidentes aparentemente tão diferentes, ou melhor, essa grande estratégia Obama-Trump foi bem analisada pelo colunista Ross Douthat, nesta terça-feira (12) no jornal The New York Times: “ Mas ao assistir o reality show Trump-Kim na televisão nesta semana, em Cingapura, vale a pena notar uma continuidade mais específica entre as duas presidências – entre a estratégia de política externa de Obama e o que Trump prometeu a caminho da nomeação republicana e da Casa Branca”… “Trump e Obama, apesar de todas as suas diferenças, estão lidando com os mesmos fatos: o poder americano é limitado, a grande estratégia americana é ultrapassada ou inexistente e ser uma superpotência nos anos 2010 requer escolhas mais difíceis e mais barganhas desagradáveis do que em 1999”.

Como parte deste irreversível processo histórico, os termos estabelecidos pelos EUA e aceitos pela Coréia do Norte não são importantes apenas porque preveem o desarmamento nuclear desta última. Aliás, esse desarmamento completo da Coréia do Norte talvez nem aconteça, nem mesmo seja do interesse de Washington. Possivelmente torne-se um inócuo poder nuclear do modo que existe em Israel, Paquistão e Índia.

O fato é que escrever apenas sobre a superfície espetacular deste processo levou a grande maioria da mídia mundial, nesta semana, a discussões intermináveis sobre as ambiguidades formais do acordo de Cingapura – sobre o fato que os EUA não exigiram claramente o cumprimento de Kim Jong-un com o desmantelamento nuclear completo; que não se falou dos mísseis; ou das formas de inspeção das instalações, etc.

Preocupam-se com miudezas do que seria um acordo nuclear normal, como aquele realizado em 2015 com o Irã. Entretanto, o que se procurou em Cingapura não foi um acordo nuclear normal. Mais além das imagens de “armas atômicas sendo retiradas das mãos de um ditador sanguinário”, espetáculo facilmente digerível por bovinos telespectadores em todo o mundo, o que os EUA procuram nesta reaproximação espetacular com o regime da Coréia do Norte é adaptar as duas Coreias a uma nova situação mais global e que evolui de maneira particularmente mais perigosa no tabuleiro econômico e geopolítico do leste da Ásia.

Neste quadro mais amplo, e elemento mais importante da “questão coreana” é a geografia. A posição geográfica da península coreana, como já aconteceu na Guerra da Coréia no início dos anos 1950, ressurge nestes anos 2010 como importante elemento estratégico nos próximos e inevitáveis confrontos bélicos no Mar do Japão e no Mar do Sul da China envolvendo três atores principais: China, Japão e Rússia. E os EUA, na nova ordem, comandando por trás.

Depois de Cingapura ficou mais evidente que, do ponto de vista de Washington, a adaptação da estratégica península à esta perspectiva de confrontos armados na região deve assumir imediatamente a forma de reunificação política das duas Coreias.

Há mais de dois anos, na mesma semana em que a Coréia do Norte anunciou a explosão de sua primeira bomba de hidrogênio, assustando mais do que nunca os telespectadores em todo o mundo, a brava redação da Crítica da Economia aproveitou aquele espetacular acontecimento para escrever um boletim antecipando a possiblidade de reunificação das duas Coreias.

Dois anos depois de muitas outras encenações da civilização do espetáculo, essa reunificação imposta, em Cingapura, pelos EUA, aos coreanos, chineses e japoneses, deve começar a ocupar com destaque a pauta da mídia global.

É naturalmente muito difícil antecipar a forma e a velocidade com que essa reunificação das Coreias ocorrerá. Dependerá da evolução dos fatos tratados acima. A única coisa certa, entretanto, é que o grande objetivo deste “encontro histórico” ocorrido nesta semana em Cingapura foi o de apressar sua concretização.

Quais serão as consequências desta reunificação coreana para China, Rússia, Coreia do Sul e, principalmente, Japão, a grande potência imperialista daquela área geoeconômica? Eis aí um cardápio maravilhoso para a Crítica da Economia tentar esclarecer em inúmeros e apetitosos futuros boletins.

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