Por Ana Araújo e José Martins, da redação.
Philip Roth, um dos mais brilhantes escritores estadunidenses nos últimos setenta anos, dizia em seu imperdível livro Casei com um comunista que depois do período macarthista nos EUA a política tornou-se apenas uma monótona sucessão de fofocas.
Assim, as considerações menos censuradas acerca da grande política desapareciam no período imediatamente após o fim da 2ª Grande Guerra. É substituída por uma narrativa moralista de fofocas em torno de ridículas personalidades políticas ou públicas, vidas privadas, corrupção, escândalos sexuais e outras bobagens.
Na melhor das hipóteses, na academia, principalmente, para não dizer que não sobrou nada menos deprimente que a fofoca pura e simples, ainda se ouve ou se lê alguma coisa como a ação de “grandes homens” ou de “grandes ideias” para explicar a origem ou desdobramentos de grandes acontecimentos históricos. Mas nada além dessas banalidades idealistas.
Quando ocorre um grande acontecimento como agora, as fofocas se misturam a narrativas de folhetins de péssimo gosto – invariavelmente como uma luta do bem contra o mal, do bom mocinho Joe Biden contra o bandido “fascista” Donald Trump, do espírito conciliador e dos direitos humanos contra a intolerância dos conservadores das desigualdades sociais e tantas outras bobagens que só idiotizam um pouco mais a espectadora opinião pública.
O ataque ao Capitólio, em Washington, nesta quarta-feira (06 de janeiro) pode ser considerado um destes grandes acontecimentos históricos. Há que se verificar. Mas, levando em conta as considerações acima, recomenda-se um razoável distanciamento do que a narrativa oficial e da mídia global considera mais importante para decifrar esses acontecimentos e o que vem pela frente.
Por exemplo, responda quem puder: a importância e principalmente as consequências da invasão do Capitólio por uma multidão de apoiadores do atual presidente da República e candidato perdedor nas últimas eleições, Donald Trump, pode ser comparada com o famoso ataque às torres gêmeas de Nova York quase vinte anos atrás?
Uma inspirada comentarista política tenta responder: “ O alvo foi o Capitólio, não as Torres Gêmeas, mas também foi terrorismo … não foi a Al Qaeda, não foram as Torres Gêmeas, não morreram três mil americanos, mas ainda assim o que ocorreu na (ainda) maior democracia do mundo não tem outro nome: foi terrorismo, um terrorismo doméstico, interno, contra o Capitólio (o Congresso dos Estados Unidos) e atiçado pelo próprio presidente da República, Donald Trump. E onde estava a Força Nacional? ”
Aprofundemos então esta comparação. Talvez o “06 de janeiro” desta semana seja até mais importante que o “11 de setembro” de vinte anos atrás. O mais provável é que seja. Esta é uma constatação provisória. Só poderá ser confirmada no desdobramento das dramáticas condições reais de funcionamento do país nos próximos trimestres.
Há que se considerar uma diferença muito sutil entre o que originou as ações de vinte anos atrás contra as Torres Gêmeas e as de quarta-feira passada contra o Capitólio. Uma diferença entre espetáculos, se é que o sistema de segurança dos EUA ainda conseguirá criar, como em 2001, um verdadeiro espetáculo com os acontecimentos desta semana.
Dificilmente conseguirão transformar o 06 de janeiro em um verdadeiro espetáculo. Acontece que, ao contrário de agora, o 11 de setembro obedeceu a um script debordiano clássico.
O ataque às torres gêmeas foi um espetáculo conscientemente concebido, coordenado e executado pelo Pentágono, complexo militar-industrial, forças militares especiais e serviços internos de segurança do governo estadunidense – conjuntamente com outros colaboradores externos como Mossad, de Israel, Al-qaeda, da Arábia Saudita, e outras estranhas criaturas menos votadas.
Do começo ao fim, com objetivos planejados e alcançados pelo terrorismo de Estado do governo estadunidense. O mesmo não se pode falar do 06 de janeiro, que parece ter acontecido desorganizadamente, sem estratégia, sem logística de execução, etc.
Essa diferença é muitíssimo importante, pois, como se verá na sequência, a espontaneidade dos acontecimentos é uma marca importante do atual processo de ingovernabilidade burguesa e causará muito mais incertezas e fragilidades do que benefício para as forças da lei e da ordem do regime.
Não se faz um espetáculo para perder. Assim, ao contrário de agora, o espetáculo do 11 de setembro foi concebido com objetivos políticos internos muito precisos. Em primeiro lugar, reforçar o totalitarismo e governabilidade no país. Expandir o controle totalitário e ilimitado da vida privada dos cidadãos. Repressão e controle mais eficiente sobre os movimentos da classe operária. Abortar na raiz possíveis rebeliões revolucionárias. Conseguiram.
Em segundo lugar, mas não menos importantes, o 11 de setembro teve objetivos externos: fabricar guerras em áreas periféricas e atualizar o poder bélico estadunidense em todos os pontos do sistema imperialista.
Objetivos internos e externos milimetricamente alcançados nas décadas seguintes. Os capitalistas se beneficiaram claramente do espetáculo produzido. As consequências sobre a classe trabalhadora mundial foram duramente sentidas.
Quanto aos resultados internos, um dos mais importantes do 11 de setembro foi a criação, em 2003, do The United States Department of Homeland Security (DHS), devidamente humanizado e popularizado na conhecida série “Homeland”, da Netflix. Recomenda-se que seja assistida, mesmo que com as devidas ressalvas de praxe.
Nem o conjunto de governos fascistas, nazistas, e outras formas democráticas mais organizadas de governo que surgiram nos anos 1930 trabalhando juntos – incluindo o chamado New Deal estadunidense, off course – poderiam produzir uma máquina mais lubrificada de totalitarismo e controle da população trabalhadora como a DHS estadunidense.
A Homeland e demais agências de segurança, espionagem e terrorismo dos EUA é o macarthismo tecnificado e plenamente realizado neste início do século 21. Preponderância do Estado-capital sobre o antigo Estado-político dos cidadãos, de eleições, de parlamentos e outras inúteis quinquilharias do passado.
Outra coisa: nada de “neo-isso” ou “neo-aquilo”, como adora vagar em vaporosas viagens espirituais a romântica esquerda democrática e outros reformadores sociais.
Devem começar a ver estas mudanças como democracia e civilização em pleno processo de aperfeiçoamento.
Como a realização de um processo verdadeiramente democrático de submissão do direito e das leis do pacificador Estado-político deificado por Hegel às leis imediatamente emanadas do moderno Estado-capital criticado por Marx e Engels.
Por último, mas não menos importante, alcançou-se com o 11 de setembro outro objetivo vital para os EUA e todos os capitalistas do mundo: uma fulminante recuperação da crise econômica que já se encontrava, desde a virada de 1999 para 2000, no limiar da passagem para uma crise geral, catastrófica.
Uma ampla análise destes fatos ocorridos nos cinco primeiros anos deste século pode ser encontrado no livro Martins, José Antônio. Império do terror: Estados Unidos, ciclos econômicos e guerras no início do século XXI. São Paulo, Sundermann, 2005.
É justamente esta moderna e bem sucedida democracia do período pós guerra que agora parece ameaçada depois do ataque ao Capitólio. Como observado acima, não por causa da ação de qualquer verme oportunista de direita ou de esquerda que se sucedem em cada novo governo da grande potencia econômica e militar do planeta.
A democracia estadunidense, que até 06 de janeiro exibia uma inquestionável solidez e invencibilidade, agora está realmente ameaçada. Mas as razões são essencialmente materiais.
Já tratamos desde processo que corrói a sólida máquina imperialista em nosso recente boletim Ao Vencedor as Batatas, no qual se observava a alegria e uma descomunal e ansiedade da burguesia de todos os quadrantes do mundo com a eleição de um novo presidente dos EUA.
“Existe motivo para esta ansiosa festividade de todos os cidadãos do mundo? Claro que existe. Afinal, os distintos eleitores de Nevada e do Arizona acreditam piamente que o vencedor da eleição será capaz de desarmar politicamente os principais problemas econômicos e sociais nos EUA e alhures.”
E concluíamos, não sem uma indisfarçável ironia: “É verdade que eles não sabem muito bem da natureza mais profunda desses problemas. Nem é preciso. Basta acreditar na força das ideias e na ação dos grandes homens para reverter todos seus problemas. E que o futuro presidente estará ai para isso.”
Em forma de conclusão preliminar: o ataque de 06 de janeiro ao Capitólio é qualitativamente diferente do ataque às Torres Gêmeas por várias razões. Dificilmente será remasterizado em novo espetáculo. Apenas revelam a gravidade dificilmente superável dos principais problemas econômicos e sociais nos EUA e alhures.
Assim, o “6 de janeiro” apenas faz parte de um processo que se constitui de variadas formas de crise nos EUA. E a ingovernabilidade, que já era uma tensão constante nos últimos quatro ou cinco anos na Casa Branca e adjacências é uma destas formas de um processo global e que agora se revela cruamente como realidade visível a todos os mortais.
O ataque ao Capitólio não criou nada, apenas revelou a natureza política de um perigoso processo de ruptura material. Perguntem à inteligente Mrs. Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos EUA, e ela explicará direitinho do que se trata esse perigoso processo. Claro que todos os altos dirigentes políticos de Washington também sabem. O que ninguém sabe muito bem é como evitar seu agravamento.
Doravante, a fragilidades e instabilidades do novo governo variarão na exata evolução destes problemas econômicos e sociais. O novo governo já se inaugura cheio de ameaças e claramente fragilizado pela rápida evolução dos acontecimentos políticos.
Os acontecimentos políticos sempre evoluem mais celeremente que os econômicos. Estes últimos sempre mantem certa inércia nos seus movimentos. Menos nas fases de crise dos ciclos de superprodução de capital. É justamente por isso que os próximos quatro trimestres serão decisivos.
Finalmente, o “06 de janeiro” revela à opinião pública de todos os países – às grandes potências mundiais, principalmente – que a ingovernabilidade política nos EUA quer dizer um crucial enfraquecimento econômico, social e militar da grande potência líder do período pós guerra. E isso muda as principais regras e instituições armadas que comandaram a Pax Americana dos últimos setenta anos.
A violência potencial da ordem democrática torna-se cinética. Washington se fecha e se arma até os dentes para garantir a segurança na posse do bom mocinho Joe Biden na próxima quarta-feira (20). Como em uma ditadura militar qualquer da periferia.
Ora, qualquer estudante do primeiro ano do curso de Ciência Política sabe que a ação armada direta, explícita, autoritária, para garantir a ordem social é a maior prova da fraqueza de poder de qualquer governo.
Ao contrário do que se passa com os indivíduos em uma academia de fitness, nos Estados quanto menos ostentação de músculos mais poder eles têm.
Esta lei mostra também qual a diferença entre formas autoritárias e totalitárias de poder do Estado. As formas autoritárias da democracia são as menos eficientes na administração da luta de classes e no desenvolvimento econômico (não confundir com crescimento econômico).
As formas democráticas autoritárias estão mais presentes na periferia do sistema. Permanentes instabilidades políticas, ditaduras militares instaladas formalmente ou pairando no ar.
As formas totalitárias da democracia, por outro lado, são as mais eficientes na administração da luta de classes e na economia. Estão mais presentes nas metrópoles dominantes na ordem imperialista global. As formas totalitárias da democracia são muito mais violentas no controle da luta de classes que as formas autoritárias.
Mas, como um cometa do apocalipse, parece que nos últimos dias o autoritarismo está substituindo formas de violência democráticas mais sofisticadas na maior potência econômica e militar do planeta.
O Estado e a democracia se enfraquecem no centro do sistema. Isso muda o jogo global.
As mesas começaram a dançar no universo, quando tudo em volta parecia parado… parafraseando Marx, quando ele menciona no livro 1 de “O Capital” antiga superstição chinesa…