sábado, abril 27, 2024
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Breaking Bad Temp.1 Ep.12 O Pêndulo de Istambul

Turquia é o patinho feio da Europa. Tem cara de muçulmano. Tão feio que não lhe deram nem o crachá de participante da União Europeia. Fazem um monte de exigências. E chantagens. É o único país europeu importante (além da Rússia) que não foi aceito por este bloco germânico. Se isso seria bom para ela é outra história. Há poucos dias os ingleses disseram que não seria. Portugal, Grécia e outras pequenas economias europeias já provaram o gosto amargo desse suicídio econômico de pertencer à UE. Entretanto, até a semana passada a Turquia era um membro importante e ainda muito bem vindo da OTAN – organização imperialista de ocupação militar da Europa pelos EUA. Essa deferência geopolítica só acontece por causa da geografia. Dentro da Turquia existe um mar chamado Mármara e seus dois estreitos Dardanelos e Bósforo. Quem não pagar pedágio não passa do Mar Mediterrâneo para o Mar Negro. Que dizer, além da Eurásia, e sua capital Moscou, os flancos sul e leste europeu dependem dramaticamente desta geografia.

 Afinal, a Turquia se localiza na Europa ou na Ásia? Depende. Neste caso bem particular da ordem política internacional a geografia é altamente variável. Uma hora a Turquia é Euratlântica, outra hora é Eurasiática. Esse pêndulo é demorado. E decisivo. Quando muda de lado faz muito estrago no jogo imperialista. Ou, quando este jogo começa a mudar, ele se acelera. Como sucede desde a primavera árabe até início da guerra na Síria. É claro que o que a Turquia faz ou deixa de fazer depende primeiramente dos seus problemas econômicos e sociais domésticos. Quer dizer, da luta de classes, como em todo lugar. Mas depende mais do que ninguém do humor e das movediças decisões das potências militares. Dos EUA e da Rússia, puxando a fila. É nesta riquíssima relação orgânica entre luta de classes nacional e geopolítica global que aconteceu na sexta-feira (15) um mirabolante golpe de Estado na Turquia. A ordem imperialista no Oriente Médio e adjacências não será mais a mesma que vigorou até este final de semana.

Quem esteve por trás do golpe iniciado no dia 15 de Julho? O governo norte-americano (leia-se CIA) afirma que foi o governo turco que promoveu uma farsa de golpe de Estado para justificar a eliminação dos seus opositores nas forças armadas, na burocracia estatal e no aparato judiciário. Além disso, o golpe serviria para impor a pena de morte, fechar o regime e intensificar a vigilância policial sobre os cidadãos em geral. É assim que é transmitido pela mídia imperialista global. Sem ouvir o outro lado. De seu lado, o governo turco de Recep Erdogan acusa os Estados Unidos de estar por trás do golpe.  Como sempre esteve, dizem eles, em todos os golpes e ditaduras militares na Turquia no pós-guerra (1945). Pelo menos nesta reminiscência histórica eles não estão mentindo. Desta vez, segundo o governo turco, os preparativos para o golpe teriam sido através de uma imensa rede comandada desde os EUA por Fethullah Gulen, clérigo muçulmano que está refugiado na Pensilvânia. E mais ainda: acusam que oficiais do exército norte-americano participaram nas operações golpistas do dia 15.

Discutir quem deu o golpe é uma discussão meio bizantina. Os dois lados apresentam bons argumentos. O fato que interessa é que o governo turco foi vencedor neste imbróglio. Pelo menos no primeiro round. O mais provável é que ele já sabia detalhadamente da trama conspirativa dos EUA e se preparou há um bom tempo não só para resistir militarmente ao golpe, mas principalmente para catalogar todos seus inimigos a serem eliminados dentro do exército e outras instituições do Estado. Resistir e golpear. O problema é que essa lista de inimigos de Erdogan é imensa. Do tamanho da crise econômica interna e da ingovernabilidade nacional. Por isso ele quer aprovar a pena de morte em regime de urgência. Tudo dentro da lei. Democraticamente. Os números são desencontrados, mas as melhores fontes relatam que já no primeiro dia  após o golpe mais de 7.000 pessoas já tinham sido presas, dentre as quais 2.800 oficiais (100 generais e almirantes). Na mesma sequência foram destituídos de seus cargos 2.745 juízes e promotores, dentre os quais 2 ministros da Suprema Corte, além de dezenas de milhares de outros burocratas de várias patentes do serviço estatal, professores universitários, intelectuais, etc. (The Wall Street Journal, “The Revenge of Turkey’s Endorgan”, 17/Julho).

Pelo menos 11 portais de notícias aliados dos EUA e de oposição foram fechados. Continuam as detenções e prisões de centenas de generais e outros oficiais de alto escalão do exército. Na quarta-feira (20), o governo turco decretou estado de emergência por três meses. Em entrevista à televisão Al Jazeera, no mesmo dia, Erdogan disse que 9.004 pessoas foram presas até agora e que os expurgos continuarão tirando os golpistas da burocracia estatal. Querem um golpe mais bem sucedido que este? Erdogan se propõe a uma substituição completa das velhas peças do Estado. Aonde vai esse processo de “limpeza” dos colaboradores que ainda restam do velho e claudicante establishment imperialista na Turquia? Talvez algumas movimentações diplomáticas e fatos recentes ajudem a responder a essa difícil indagação.

No dia 13 de Julho, dois dias antes do golpe, o primeiro-ministro turco, Sr. Binali Yıldırım, declarava na televisão: “Eu estou seguro que reataremos nossos laços normais com a Síria. Precisamos disso. Este é nosso maior e irrevogável objetivo: desenvolver boas relações com Síria e Iraque, assim como todos nossos vizinhos que margeiam o Mediterrâneo e o Mar Negro.”.  Ainda no dia 15 de Julho, sem ainda saber do golpe que estaria para ocorrer, a revista The Economist ainda teve tempo de se mostrar surpresa com a súbita guinada da política externa turca: “O que quer dizer essa política de reaproximação da Turquia com seus vizinhos? O recém-instalado primeiro-ministro turco, Binali Yildirim, recupera uma fórmula tradicional para lidar com os turbulentos vizinhos do seu país: diminua a retórica e aja com boas ações”. [“Turkey is suddenly making friends, not enemies” (Turquia está de repente fazendo amigos, não inimigos)]. A revista inglesa termina o artigo onde começou. Não dá a mínima pista para o que realmente está por trás das manobras turcas de reaproximação com seus grandes desafetos no período recente: Síria, Irã, Iraque, Rússia e, pasmem, Israel.

É claro que este movimento de normalização das relações da Turquia com a Síria e outros vizinhos não é um ato isolado. Faz parte de um jogo ocorrendo neste momento com radicais mudanças de desenvolvimento no Oriente Médio. Com inevitáveis consequências para todos os países do leste europeu e, portanto, para o velho continente como um todo. Para entender melhor esse imbróglio uma importante observação inicial: todos os vetores deste complexo jogo de guerras passa por Moscou, capital da Rússia e de toda a Eurásia. Vejamos então, para começar, alguns importantes dignitários que os dirigentes russos andam recebendo nos últimos dias nos sagrados aposentos do Kremlin.

Começando pelo mais importante. No mesmo dia em que o primeiro ministro turco Yildirim fazia aquelas primeiras declarações publicas de reaproximação com seus belicosos vizinhos, o secretário de estado dos EUA, John Kerry, fazia sua terceira visita à Rússia neste ano. Desta vez com a intensão de expandir de forma radical a cooperação militar dos dois países na guerra da Síria. Decidido a acabar com esta guerra. Em estreita parceria militar com a Rússia no chão da guerra. É muita coisa ao mesmo tempo. Depois de acertar detalhes estratégicos da inusitada parceria com o competente chanceler russo, Sergey Lavrov, o chefe da diplomacia norte-americana foi recebido por Wladimir Putin. Nestas conversações – que analisaremos com mais detalhes em futuras matérias sobre a realpolitik global – ficou implicitamente estabelecida uma notável expansão das funções estratégicas e da presença militar e diplomática da Rússia não só na Síria, mas em todo o Oriente Médio.

Coisa inimaginável para a opinião pública mundial até alguns anos atrás: os EUA subcontratam, “terceirizam” ao seu parceiro euroasiático de longa data grande parte de suas atividades imperialistas nesta tumultuada região onde se concentra pelo menos três quartos da atual oferta de petróleo no mercado mundial. Mas nem tudo são canhões e rosas nestes acordos de cúpula entre a Casa Branca e o Kremlin. Se eles eram inimagináveis para a opinião pública, continuam inaceitáveis para parte considerável do alto escalão do Pentágono. Principalmente para a maioria dos oficiais que neste momento executam as missões de guerra na Síria e adjacências. Exatamente quem põe a mão na massa. Obama e Kerry terão bastante trabalho para convencer esses “falcões” da política externa norte-americana da sua ousada parceria com os russos no campo de batalha. [Veja a respeito interessante matéria de Nancy A. Yussef, “Pentagon Resists Obama´s New Plan to Work Whit the Russians in Syria”, The Daily Best, 13/07/2016].  

Esse novo protagonismo da Rússia inclui também acordos recentemente estabelecidos entre Moscou e Tel Aviv. Em 08 de Junho passado, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, visitou mais uma vez a Rússia. É a quarta vez em um ano que ele visita seu colega Putin. Sempre muito bem recebido. Como velhos amigos. No mesmo período Netanyahu se reuniu apenas uma vez com o presidente dos EUA. Não imaginem que ele brigou com Obama. Ao contrário, apenas obedece às suas ordens. Na última visita de Netanyahu ao Kremlin, ficou demonstrado que Israel já aceita o novo protagonismo estratégico de Moscou na ordem imperialista no Oriente Médio. O mais importante valete de Washington nesta região procura apenas se adaptar à redução relativa da presença norte-americana que doravante passa a ser preenchida por Moscou. Isso se chama realpolitik. Onde muita coisa muda para que tudo continue como está.

O deslocamento da política israelense provocou reações imediatas. Assim, não é uma coincidência que o ataque terrorista no Aeroporto Internacional Atatürk, de Istambul – o nono mortal ataque terrorista na Turquia desde o verão passado – veio um dia depois de acordos entre Israel e Rússia serem anunciados. O Estado Islâmico (ISIS) é certamente contra tais acordos. Eles selam seu destino e sua imagem de quadrilha terrorista de respeito. Pelo menos seus militantes já estão sabendo que Israel começa a abandoná-lo. Perdem assim o “suporte técnico” para a construção do seu brilhante califado. Resta saber o que ainda faz por eles a Arábia Saudita, seu “suporte financeiro”. Cada vez menos. Sua posição irá enfraquecer irremediavelmente no caso de Turquia reatar seus laços com o governo de Damasco para coordenar com Síria e Rússia seus esforços na chamada “luta contra o terrorismo”. Terá o mesmo destino que a Al Qaeda e seus filhotes ainda sobreviventes na Síria, como Jabhat al-Nusra e outras execráveis criaturas, que, aliás, foram todas rifadas nas últimas conversações entre Kerry e Lavrov em Moscou. Doravante, nos atentados na Europa, EUA e outras capitais mundiais o Estado Islâmico será cada vez mais substituído por “lobos solitários”. Com ISIS ou sem ISIS os espetaculares atentados de governos de Estados terroristas como EUA, França não podem parar.  

Outros ventos embalam a vontade das potências e seus valetes no Oriente Médio e alhures. E movem o pêndulo geopolítico da Turquia. Istambul está novamente no Oriente. Depois do golpe do dia 15 último a Turquia será claramente Eurasiana. Pelo menos é o que desejam os partidários de Erdogan. Como seu influente primeiro ministro Binali Yildirim, ao indicar que a Turquia pode restabelecer a pena de morte em todo o país para lidar com os golpistas, inclusive ou principalmente aqueles encastelados na base aérea norte-americana de Incirlik. Esta bem calculada declaração tem forte simbolismo e clara intenção estratégica. Indica que a Turquia decidiu rejeitar e se afastar da UE. Esta última é completamente contra a pena de morte e por isso já ameaçou parar imediatamente as longas das negociações de adesão da Turquia ao bloco germânico. Deu resultado. Era exatamente o que os partidários de Erdogan esperavam. Afinal, eles calculam corretamente que a UE não tem nada a ver com os interesses econômicos do seu país e não seriam capazes de extrair qualquer vantagem daquele moribundo bloco, principalmente após o referendo da Brexit e a grande cisma que deve ocorrer entre as velhas potências do Ocidente.

A política externa de Ankara é recalibrada para alinhar-se ao bloco eurasiano centralizado por Moscou. Foi exatamente isso que Recep Erdogan, novo inimigo público numero 1 do Ocidente, disse em telefonema ao seu colega Hassan Rouhani, presidente do Irã, na segunda-feira (18) “A Turquia está pronta para trabalhar no sentido do restabelecimento da paz e da estabilidade na região, juntamente com a Rússia e Irã” – disse o presidente Turco Tayyip Erdogan ao seu parceiro iraniano – “Hoje, estamos determinados mais do que nunca a contribuir para a solução dos problemas regionais, lado a lado com o Irã e a Rússia e em cooperação com eles,”. A informação é da agência de notícias de República Islâmica (IRNA). Erdogan ainda teria informado Rouhani sobre a situação na Turquia. “Neste momento, a situação está voltando ao normal, mas é muito cedo para dizer que tudo acabou”.

É realmente muito cedo para dizer que tudo acabou. Afinal, essa “limpeza” que Erdogan iniciou nesta semana dentro de seu país tem o sinistro objetivo de massacrar os remanescentes da velha ordem imperialista na região – que vigorou com maior intensidade desde a era Bush, passando pela guerra do Iraque e Afeganistão, até a atual guerra da Síria. A reação dos “falcões” do Pentágono e da OTAN não tardará a se mostrar com mais clareza. Seus primeiros sinais já aparecem na mídia imperialista global e nas declarações das chancelarias dos seus valetes em todo o mundo contra “o golpe de Erdogan”. O que se sabe é que tudo que acontece e que deve acontecer nos próximos dias e meses na Turquia, como podemos observar, é diretamente influenciado por novo processo geopolítico global que está apenas começando. E que se abre de forma imprevisível e explosivamente criativa para o futuro.  Allahu Akbar!

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