terça-feira, outubro 29, 2024
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Mal-estar da civilização

por José Martins, da redação

sempre esperei o pior da civilização e nunca me decepcionei”  (Sigmund Freud)

Há um acidente em câmara lenta acontecendo. Um grande acidente histórico.  Para qualquer lugar que se olhe há pelo menos um fator de ruptura. E a tendência é que este processo se acelere. Soam as sirenes: apertem os cintos, os capitalistas ligaram o globo terrestre no modo catástrofe.

A guerra mundial não é a única consequência importante do modo catástrofe da civilização. Guerras e revoluções sempre caminharam juntas. Não há nenhum motivo para acreditar que agora será diferente. Necessidade material pura e simples.

O capital afunda em Wall Street; OTAN (e Rússia) amplia a guerra; a crise do custo de vida ameaça de morte o proletariado internacional; esquenta a luta de classes em todo o mundo.

São 8 horas em Nova York, horário local, desta quarta-feira (22). O S&P 500 desaba para seu pior primeiro semestre desde a presidência de Richard Nixon.  Com apenas sete dias de negociação restantes até o final de junho, o índice caiu 21% desde o início do ano, uma escala inigualável por qualquer início de ano desde 1970, segundo dados compilados pela Bloomberg.

No ano todo de 2008, no auge da última crise periódica de superprodução, o “fundo do poço” da desvalorização das ações do S&P500 foi de 12,8%, como destacado no gráfico acima. Só neste primeiro semestre de 2022 já caiu 21%.

É apenas o início. Como já observado dois meses atrás, o fundo do poço deste banho de sangue em Wall Street deve ser encontrado apenas com a queda de até 60% do índice S&P500 frente ao índice de janeiro deste ano.

Eram 13 horas, horário local, desta terça-feira (21), na tórrida Trafalgar Square, no coração de Londres. As manifestações com milhares de pessoas contra a miséria do crescente custo de vida se sucedem desde sábado (18) e a maior greve desde o final dos anos 1970 dos trabalhadores ferroviários paralisam o transporte em todo o país. Os trabalhadores devem paralisar a rede de transportes nesta terça, na quinta e no sábado.

Segundo o jornal The Guardian, “a Inglaterra está a caminho da pior interrupção do transporte de massa desde que Margaret Thatcher foi primeira-ministra, depois que os esforços para evitar uma greve planejada dos ferroviários falharam”… “outros sindicatos, representando profissionais de saúde e professores, também estão ameaçando greves, pois uma taxa de inflação de mais de 9% corrói os ganhos reais, o que significa que a agitação pode continuar no verão e além”.

Em entrevista à Sky News, o secretário de Transportes do governo inglês, Grant Shapps, disse no domingo que “o caos iminente que haverá com as greves de trens nos dias 21, 23 e 25 de junho, poderia ter sido evitado”.

Ele culpou “os sindicatos ‘militantes’ por rejeitar tentativas de negociação e resistir aos esforços para modernizar as redes ferroviárias do país”. E afirma com todas as letras que os trabalhadores ferroviários também viram um aumento de 40% nos salários na última década, com salários médios para a indústria em £ 44.000, subindo para £ 59.000 para maquinistas, o que, segundo ele, compara com uma média de £ 31.000 para enfermeiros. “Acho que é um grande ato de automutilação entrar em greve no momento”, completou Shapps.

Mick Lynch, secretário-geral do sindicato dos ferroviários (RMT), pinta um quadro diferente: diz que até 5.000 trabalhadores já foram forçados a deixar seus empregos como parte das negociações de modernização apoiadas pelo governo, a maioria de seus trabalhadores não teve nenhum aumento salarial em dois ou três anos e os concessionários ferroviários agora querem estender o tempo de trabalho, semana de 35 a 40 horas.

“Então, eles estão realmente propondo cortes salariais, não aumentos salariais, e trabalhando mais horas”, disse Lynch. “Não queremos ser a causa de perturbações na vida das pessoas. Queremos um acordo, mas estamos enfrentando uma crise em nosso setor”.

Pagamento dos salários abaixo do seu valor e prolongamento da jornada de trabalho. Alguém duvida que isto não seja mais-valia absoluta? Alguém duvida que isto que os capitalistas ingleses chamam de “modernização das relações trabalhistas” nada mais é do que um expediente para jogar os trabalhadores da Inglaterra nas mesmas condições de miséria e fome impostas desde sempre aos trabalhadores na China, Brasil, Índia, México, Turquia e outras estropiadas economias da periferia?

Esta grande mudança no comportamento dos capitalistas – de maneira mais intensa nas décadas mais recentes da chamada globalização – não ocorre acidentalmente. Como um raio no céu azul da civilização. E não se trata, muito menos, de um problema de desigualdade, repartição, “concentração da renda” e outras bobagens propagandeadas pelos amigos do povo e esquerda burguesa.

Trata-se, ao contrário, de um problema de exploração da classe proletária internacional pelos capitalistas e demais classes improdutivas do sistema. De um problema ligado imediatamente à produção e à superprodução de capital. Um problema que não poderia, portanto, ser resolvido ou até minimizado dentro do regime político vigente, nacionalmente, com a boa vontade política da burguesia (de direita ou de esquerda), políticas públicas, etc.

O que acontece neste momento, de maneira mais intensa, é que nas maiores economias imperialistas, onde predominava com folga a mais-valia relativa, baseada na exploração dos trabalhadores – aumento da produtividade e pagamento do salário não muito abaixo do valor da força de trabalho – as classes dominantes procuram agora elevar a taxa de lucro e escapar da atual crise de superprodução generalizando a mais-valia absoluta, quer dizer, aumentando simplesmente a miséria dos trabalhadores – rigidez da produtividade, aumento da jornada de trabalho e pagamento do salário abaixo do seu valor.

Nossos leitores já sabem que este rebaixamento das condições de reprodução da classe proletária não se passa apenas na Inglaterra. As burguesias estadunidenses, alemãs, francesas, japonesas, suecas, etc. fazem a mesma coisa. Isso é mais do que evidente. Criam assim o ambiente para a reprodução simples do capital, acumulação zero e, finalmente o totalitário estado estacionário.

O que não é tão evidente é que a exploração característica da mais valia-relativa e a miséria característica da mais-valia absoluta se fundem no que Marx chamava de unidade da mais-valia. Uma metamorfose no processo de valorização que ultrapassa as fronteiras nacionais e se globaliza em novos ou renovados espaços de valorização no mercado mundial.

Assim se verifica que, de maneira prática, a predominância da mais-valia relativa na totalidade do sistema não faz desaparecer a originária forma de produção de capital através do mecanismo da mais-valia absoluta.

Ao contrário. É exatamente com os modernos mecanismos tecnológicos especificamente capitalistas, característicos da fase de submissão real do trabalho ao capital (predominância da mais-valia relativa) que os capitalistas criam novos espaços geográficos ou nacionais de valorização, onde se inaugura (ou se restaura, como no caso da Argentina, nos anos 1970 em diante) a produção de capital com predominância da mais-valia absoluta.

Esta ousadia de argentinização na base material do centro imperialista explode sua tradicional e relativamente estável superestrutura política.  Envolve necessariamente a substituição política e social daqueles antigos “paraísos” do chamado Estado do bem-estar do pós-guerra por infernos tropicais e asiáticos que só eram encontrados até recentemente na periferia dominada do sistema.

Querem uma ilustração desta metamorfose e plena realização da civilização? Voltemos então para Londres, para a movimentada Trafalgar Square e observemos uma consequência muito ilustrativa do que os economistas chamam de “crise do custo de vida”. Um assombroso arrocho salarial que leva os trabalhadores ingleses e suas crianças a passar fome como qualquer trabalhador em Xangai, Mumbai, Buenos Aires, etc.

Os trabalhadores ingleses e suas famílias vivem um ano de dor. Como testemunha Stephen Evans, dirigente do Learning and Work Institute: A crise do custo de vida está atingindo duramente com os salários regulares reais caindo mais acentuadamente este mês do que em qualquer mês deste século. Enfrentamos um ano de dor. O Chanceler aumentou a oferta de ajuda e precisa se preparar para fazer mais. Também precisamos de um foco urgente em colocar nossa economia em movimento novamente para que os padrões de vida possam subir”.

A violência econômica avança e o mal-estar da civilização se aprofunda ainda mais mais nos corações e mentes da humanidade. Noticiou-se nesta quarta-feira (22) que a inflação na Inglaterra  acelerou para 9,1% em maio, de 9% no mês anterior, atingindo uma nova alta de 40 anos, com o aumento do preço de tudo, desde combustível e eletricidade até alimentos. Esta elevação dos preços e o congelamento dos salários provocam consequências socialmente inaceitáveis. Vejam, por exemplo, o que está acontecendo com as crianças filhas dos trabalhadores no Reino Unido.

Imprevisto de última hora: interrompemos aqui este boletim. Involuntariamente. Tínhamos projetado concluir este boletim relatando uma consequência altamente ilustrativa da perda de poder de compra dos salários na Inglaterra. Os dados estavam em uma série de matérias publicadas na primeira quinzena deste mês pelo jornal inglês The Guardian. O título ou o tema das matérias: “Crianças estressadas e se automutilando com a crise do custo de vida no Reino Unido | Saúde das crianças | The Guardian

Trata-se de um fenômeno desconhecido, no qual as crianças filhas de trabalhadores apresentam comportamentos de automutilação, agressões físicas contra seu próprio corpo. A conclusão dos pesquisadores, depois de visitar as casas e escolas destas crianças, entrevistar seus pais e professores, é que o stress de passar pela chamada “crise do custo de vida”, que se espalha agora por todo país, com os pais procurando resolver a falta de dinheiro, a falta de comida e outras necessidades básicas (inclusive de pequenos lazeres e passeios da família), nervosismo, brigas domésticas e reclamações cada vez maiores dos pais com a situação, noites mal dormidas, etc…. tudo isso e outras coisas muito interessantes descritas nas matérias acabam provocando nas crianças este estranho comportamento autodestrutivo. As professoras relatam que isso é cada vez mais comum nas salas de aula e em outros ambientes comuns de recreio na escola.

Lamentavelmente, tínhamos salvado apenas os links das matérias. Neste momento, quando procuramos abrir aqueles links, nos defrontamos com a surpreendente notícia do jornal de que aquelas matérias haviam sido “removidas para posterior revisão”!!!! https://www.theguardian.com/society/2022/jun/18/children-stressed-and-self-harming-uk-cost-of-living-crisis-childhood-trust

Veja na parte de baixo da página a lista de “matérias relacionadas” que foram todas removidas.

Duas sugestões finais: a primeira é que poderíamos agora organizar uma live para discutir este grave problema que atinge particularmente as crianças inglesas. Como as necessidades de reprodução da civilização abafam, censuram, reprimem e mutilam o livre desenvolvimento da individualidade. Pedimos nesta live participação e diálogo com camaradas com sólida formação em psicologia para historicisar melhor o problema. De um ponto de vista da classe trabalhadora, quer dizer, sem prejuízo do rigor analítico.

A segunda sugestão é discutir na mesma live este inusitado “fenômeno orwelliano” da grande imprensa inglesa supostamente “independente”, como The Guardian, cancelar textos já publicados, para “posterior revisão”, do mesmo modo que as pesadas censuras de classe e cancelamentos repentinos de canais nas redes sociais, etc.

Achamos que este fato é muito importante também para caracterizar a natureza do inaudito totalitarismo de Estado alcançado atualmente. Como acontecimentos nascidos no bojo desta atual crise catastrófica do capital, particularmente a guerra mundial e o desabastecimento planetário dos meios básicos de reprodução da população, enquadram materialmente o surpreendente recrudescimento do mal-estar da civilização.

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