sexta-feira, março 29, 2024
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Banco central dos EUA perde o controle da política monetária

por Fernando Grossman e José Martins, da redação.

Jerome Powel, presidente do Federal Reserve Bank (Fed, banco central dos EUA) está mais perdido que cachorro em dia de mudança. Não consegue mais falar com segurança para o mercado o que o Fed espera fazer com preços e juros nos próximos anos. A realidade avança e joga para a lata de lixo desgastados protocolos de política monetária.

Em discurso que fez semana passada no tradicional simpósio anual de Jackson Hole, pequena cidade nos EUA, Powel anunciou algumas coisas banais que o mercado entendeu ingenuamente, como coisas muito boas, e resolveu chamá-las de “uma grande mudança de política monetária”. Alguns, mais entusiasmados, como os economistas do Les Echos, de Paris, viram no pronunciamento de Powel uma mini revolução no Fed.

 Vejamos a coisa mais de perto. Primeiramente, tudo isso acontece neste momento em que sombria perspectiva deflacionária toma conta da economia de ponta do sistema global. É essa realidade que permeia todos os parágrafos e linhas do pronunciamento de Powel. Sutilmente, para não assustar a boiada de Wall Street. Mas esta não é uma tarefa fácil.

Dadas as perspectivas altamente obscuras para acreditar em qualquer crescimento econômico, ele afirma que as taxas de juros podem permanecer perto de zero nos próximos anos. O QE (relaxamento quantitativo) continua. A promessa foi recebida com alívio pelos capitalistas financeiros. Nos mercados de renda variável, pelo menos. As bolsas continuam bombando.

Já no mercado de renda fixa – cujos rendimentos reais são diretamente influenciados pela variação esperada da inflação nos próximos anos – os capitalistas não sabem exatamente como reagir ao anúncio de Powel de que o Fed buscará, doravante, fazer inflação, não mais proteger de maneira austera a economia da inflação, com metas rígidas de inflação, etc.

Mergulhando na deflação, o Fed sugere a leniência mesmo com possível descontrole inflacionário. Isso confunde os ouvintes, claro. Por isso o rendimento de referência dos títulos do Tesouro caiu logo em seguida ao pronunciamento.

Os títulos de 10 anos caíram para 0,65%, no ritmo da maior queda em semanas, antes de romper o nível de suporte chave para 0,74%, a maior desde junho. Os títulos de trinta anos se aproximaram de 1,5%, depois de cair para apenas 1,36%.

O leitor deve ter paciência com a complexidade da vida. Estas migalhas percentuais de movimentos de valorização e desvalorização dos títulos do Tesouro são cruciais para o futuro do dólar e do mercado mundial de moedas.

Não se pode esquecer observações anteriores que um elemento principal e necessário para uma verdadeira crise geral (catastrófica) do capital é o derretimento efetivo do dólar, a moeda padrão de reserva internacional, o ouro do mercado mundial capitalista plenamente desenvolvido.

A confusão na cabeça dos capitalistas menos idiotas que os simples especuladores do curto prazo se origina no fato de Powel balançar para frente e para trás quando fala da inflação. Mas este comportamento errático no discurso é muito importante para entender a realização da impotência prática do Fed neste final de ciclo e arrebentamento da crise.

Os leitores se lembram, mais uma vez, que esta fragilização da capacidade do Fed agir para enfrentar a crise atual foi amplamente prevista (e minuciosamente acompanhada) em nossas análises, no decorrer de todo o recente período de expansão (2009/2019). O que tem de novo é que agora as consequências desta fragilidade estão se realizando.

Esta impotência do Fed agir na presente crise também sempre foi salientada na Crítica como uma coisa nova no período pós-guerra (1945). E que seria uma variável importante para definir a profundidade também inédita da crise atual.

Em partes do seu pronunciamento, Powel enfatiza que o Fed não seria mais pautado pela famigerada (e falecida) fórmula da Curva de Philips que, de acordo com a economia vulgar, equilibraria o emprego da força de trabalho e o crescimento dos preços.

Apenas um reconhecimento tardio. A ocorrência do achatamento da Curva de Philips – quer dizer, quando os preços continuaram caindo mesmo com o quase pleno emprego da força de trabalho – já ocorre de maneira mais clara desde o início do último período de expansão (2009/2019). Também examinamos abundantemente este processo de fritura da teoria econômica dos capitalistas. Só agora o Fed resolve decretar a morte deste sagrado mandamento da economia política dos capitalistas.

Na prática, o Fed está protocolando solenemente o que já vinha praticando desde Ben Bernanke: o Fed estará menos inclinado a aumentar as taxas de juros se (ou quando) a elevada taxa de desemprego cair. Contanto que a inflação também não aumente muito acima de 2%, o que o deixaria muito nervoso. O cachorro correndo atrás do rabo. E a nave continua afundando.

A parte mais reveladora de tudo, porém, é quando Powell tenta explicar por que ele e outros banqueiros centrais acreditam que uma inflação mais alta é necessária. Por que o Fed quer fazer inflação!

Vale a pena ler o depoimento de um banqueiro central sofrendo as vicissitudes das águas da deflação já batendo no pescoço:

“ Muitos consideram um absurdo que o Fed queira elevar a inflação. Afinal, uma inflação baixa e estável é essencial para o bom funcionamento da economia. E certamente estamos cientes de que os preços mais altos de itens essenciais, como comida, gasolina e abrigo, aumentam o fardo enfrentado por muitas famílias, especialmente aquelas que lutam com menos empregos e renda.

 No entanto, uma inflação persistentemente baixa pode representar sérios riscos para a economia. A inflação abaixo do nível desejado pode levar a uma queda indesejável nas expectativas de inflação de longo prazo, o que, por sua vez, pode puxar a inflação real para ainda mais baixo, resultando em um ciclo adverso de inflação e expectativas de inflação cada vez mais baixas.

 Essa dinâmica é um problema porque a inflação esperada alimenta diretamente o nível geral das taxas de juros. Expectativas de inflação bem ancoradas são críticas para dar ao Fed a latitude para apoiar o emprego quando necessário, sem desestabilizar a inflação. Mas se as expectativas de inflação caírem abaixo de nosso objetivo de 2%, as taxas de juros cairiam paralelamente.

 Por sua vez, teríamos menos espaço para cortar as taxas de juros para impulsionar o emprego durante uma crise econômica, diminuindo ainda mais nossa capacidade de estabilizar a economia por meio do corte das taxas de juros. Vimos essa dinâmica adversa se desenrolar em outras grandes economias ao redor do mundo e aprendemos que, uma vez iniciada, pode ser muito difícil de superar. Queremos fazer o que pudermos para evitar que tal dinâmica aconteça aqui. ”

Lição de economia: o inimigo mortal da produção de capital é a deflação. É quando a dialética entra na cabeça dos capitalistas sem pedir licença. E o problema de Powel aumenta quando percebe com angustia que no atual período de crise a bateria do Fed está quase totalmente descarregada para qualquer reação.

Low battery, please charge. As taxas de juros estão perto de zero e deixar que elas se tornem negativas é uma temeridade, visto que tal política só piorou as coisas na Europa e no Japão.

O banco central pode continuar comprando títulos do Tesouro e títulos lastreados em hipotecas, e até mesmo comprar diretamente títulos podres das empresas privadas, proteger os governos estaduais e municipais mais necessitados.  Mas ele sozinho não consegue socorrer tão facilmente o que faz mais volume e pressiona o sistema: as multidões de pequenas empresas e massas gigantescas de trabalhadores mais afetados por esta depressão econômica.

Ele vê que seu “novo padrão de política monetária” serve apenas para inflacionar setores mais especulativos do capital fictício, tornando uma grande moleza para megaempresas globais tomar empréstimos baratíssimos e empurrando seus capitalistas mais endinheirados para ativos mais arriscados e de maior rendimento.

Deflação dos preços das mercadorias reais e hiperinflação dos ativos fictícios. Esta indecisa equação também tem limites muito claros. Ela está próxima de ser resolvida. Em uma brilhante explosão dialética entre valor de uso e valor de troca.

Mas Jerome Powell é um economista inteligente. Por isso terminou seu pronunciamento prometendo que o Fed continuará lutando com unhas e dentes para se desvencilhar da corrosiva armadilha da liquidez atual e evitar cair no território das taxas superbaixas de juros para sempre, como aconteceu com o Banco do Japão. Os economistas da superficialidade não têm a mínima noção do que isso significa.

“Uma realidade de um contexto macroeconômico bastante difícil. Realmente temos que trabalhar para encontrar cada fragmento de alavancagem que possamos obter para ajudar a estabilizar a economia, que é nosso papel”, diz o presidente do banco central do planeta.

Outra coisa muitíssimo importante: ele sabe que, na teoria e na prática, só a política monetária não será capaz de impedir a derrocada da economia. E, como já fizeram os presidentes dos bancos centrais da Europa e Japão, chama o Tesouro para gastar. A política monetária pede socorro para a política fiscal.

Mas, neste momento, aparece também como um refrão desgastado dizer que só a política fiscal é a única maneira de sair dessa “japonificação” dos EUA. A pergunta é a seguinte: será que colocar dinheiro nas mãos “daqueles que lutam com menos empregos e rendas”, como disse Powell, aumentando os gastos dos consumidores individuais por bens de consumo, resolverá o problema?

Não, podemos responder a Powel; a demanda individual pelo produto não resolve o problema da deflação e da depressão da produção. Produto é uma coisa, produção é outra. São exigidas outras modalidades de demanda dos capitalistas e do Estado para dinamizar e reativar a produção de capital. Mas este também é um tema suficientemente importante para ser tratado com ligeireza. Está na pauta de próximos boletins.

Mas Jerome Powel é um economista inteligente. Permite um bom diálogo. É por isso que ele sabe melhor do que ninguém que esta “grande mudança de política monetária” anunciada no simpósio de Jackson Holle não moverá uma agulha na deflacionada produção de capital na maior economia do planeta.

Sabe que apenas manter (oficializando) a política monetária de flexibilização quantitativa inaugurada por Ben Bernanke e continuada por Janet Yellen só permitirá que a rica Apple Inc. possa tomar empréstimos a taxas de juros mínimas para recomprar suas próprias ações e continuar aumentando seu valor de mercado para acima dos dois trilhões de dólares alcançados poucas semanas atrás. Mas, ele nos diria confidencialmente, é tudo o que o Fed pode fazer neste momento.

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