por José Martins, da redação
Há uma clara unidade dialética entre crise econômica e segurança nacional comandando a luta de classes na China. De difícil solução prática, pois à medida que suas contradições se avolumam o governo de Pequim é obrigado a se dedicar menos ao enfrentamento dos problemas econômicos e mais aos controles internos de repressão e desafios geopolíticos.
É sobre este intrincado problema que se debruça o competente economista Stephen Roach, em ensaio de muitos insights , com o título “A dispendiosa obsessão de Xi com a segurança”– publicado nesta semana na tradicional revista Foreign Affairs.
Roach é um dos poucos economistas capazes de analisar seriamente a história e os limites macroeconômicos do capitalismo chinês. Sempre foi, nos últimos 35 anos, um dos nossos interlocutores privilegiados em dezenas de boletins da Crítica da Economia. Não só nos assuntos chineses, mas, principalmente, na dinâmica econômica global, no desdobramento dos ciclos econômicos.
Continua em forma. E sempre com as perguntas certas. Como agora, por exemplo: como a busca pelo controle interno ameaça o crescimento econômico da China? Este controle a que o autor se refere vai muito além do espetacular controle (no sentido Débord da palavra) do “zero Covid” de Xi. A análise séria isola e dispensa esta ideia vazia que galvaniza todas as análises econômicas no mundo sobre as possibilidades de retomada ou continuidade da crise do crescimento chinês.
O buraco é mais embaixo. Bem mais embaixo. Começa na produção. Entre 1980 e 2020, dados fornecidos por Roach, a economia chinesa registrou uma taxa média anual de crescimento de nove por cento do PIB real. A era da globalização triunfante e do “milagre chinês”. Em 2022–23, no entanto, o Fundo Monetário Internacional espera que a economia chinesa cresça menos de quatro por cento. Outros analistas mais cuidadosos falam em três por cento. A Crítica crava 2,5%.
Ninguém pode negar que se trata de abrupto desabamento econômico. Que esta desaceleração tão acentuada em relação à trajetória anterior de hipercrescimento é, como indica Roach, o equivalente chinês de profunda crise econômica. Além disso, este desabamento do produto chinês está longe de ser um mero problema keynesiano de demanda efetiva. Trata-se do resultado de uma fragilidade produtiva. Um problema de valorização do capital. O desfalecimento da produtividade sistêmica antecipa o atual desabamento do crescimento econômico chinês.
Dá para dialogar com Roach a respeito: “Hoje, a população em idade ativa está diminuindo e a população de adultos mais velhos está crescendo rapidamente; essa tendência provavelmente continuará pelo menos nos próximos 25 anos. Com a população trabalhadora encolhendo, o crescimento da produtividade deveria acelerar para manter a economia em uma sólida trajetória de crescimento. É improvável que isso aconteça. Os primeiros sinais de problemas já são aparentes: depois de subir 1,1% ao ano, em média, de 1982 a 2010, o crescimento da produtividade total dos fatores da China, um ingrediente-chave do potencial econômico de um país, caiu em uma média anual de 0,6% entre 2011 e 2019”.
Essas observações merecem uma potencialização teórica. Lembremos que a lei geral da acumulação do capital assenta-se diretamente à dinâmica do exército industrial de reserva, quer dizer, à forma de extração da mais-valia predominante em determinada economia. No caso da China, a predominância da mais-valia absoluta na produção do capital é seu limite histórico “para manter a economia em uma sólida trajetória de crescimento”.
Só a predominância da mais-valia relativa em determinada economia nacional permite uma elevação de longo prazo da produtividade no seu processo de acumulação do capital. Em qualquer economia capitalista. Independente de qualquer particularidade nacional. A predominância da mais-valia absoluta é um freio permanente para qualquer elevação sustentada da produtividade, seja aqui, seja na China, seja em qualquer lugar.
Estes princípios estão claramente expostos na economia política dos trabalhadores de Marx e Engels. Mas a economia política dos capitalistas – liberal ou keynesiana e, principalmente, do marxismo vulgar, esta pobre variante do keynesianismo bastardo – ignora ou não dá a mínima importância a essas diferenças de formas de extração mais-valia no desenvolvimento desigual e combinado da acumulação mundial.
Portanto, só resta a Roach e outros economistas capitalistas bem intencionados lamentarem que os dirigentes do capitalismo chinês não sejam (ou nunca foram) capazes de fazer as reformas necessárias para a passagem da predominância da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa.
De todo modo, ele deveria lamentar, também, que essa crucial passagem de periodização histórica do modo de produção capitalista ocorrida na totalidade do sistema não tenha acontecido também no Brasil, Rússia, Índia, China, South África – para ficar apenas nas maiores economias dominadas no interior processo de desenvolvimento desigual e combinado no mercado mundial.
Os economistas estarão sempre se decepcionando com as grandes promessas de homogeneização do desenvolvimento econômico do capital e as insuperáveis dificuldades para realizá-las. Sempre também sem saber muito bem porque estas coisas acontecem. A China é a última destas grandes promessas. E agora pintando como a próxima grande decepção para os capitalistas de todo o mundo.
Ninguém ama mais o socialismo de mercado dos marxistas de Estado que os homens do mercado. Mas eles percebem agora que a montanha da grande promessa pariu um rato. Com características chinesas, claro, mas apenas um rato.
O que poderia ser (idealmente falando) direcionado para uma virtuosa elevação da produtividade de uma “nova superpotência econômica mundial” transmuta em tóxicas inovações tecnológicas aplicadas aos objetivos mais infames: combater o inimigo interno revoltado com suas condições escravagistas de trabalho e, na sequencia, inventar inexequíveis guerras com inimigos externos melhor preparados.
Roach detona as falsas narrativas de supostas inovações tecnológicas criadas pelo capitalismo chinês: “A inovação, há muito uma fonte crítica de crescimento da produtividade, também está em risco na China. Para seu crédito, o governo chinês se afastou de sua dependência histórica de importar tecnologias de países mais avançados em favor de encorajar a expansão doméstica de alta tecnologia. As iniciativas de política industrial da China, como “Made in China 2025”, apoiaram esses esforços com maciços subsídios estatais. Mas quando se trata de desenvolvimento de alta tecnologia, os motivos do Partido Comunista Chinês (PCCh) têm mais a ver com segurança do que com economia. As tecnologias de vigilância de ponta ajudam a repressão de Pequim (…) e o PCCh a rastrear a população em geral sob o disfarce socialmente desestabilizador de contenção zero-COVID. Ainda mais importantes são as inovações que o PCCh direciona para o desenvolvimento de capacidades militares avançadas: mísseis hipersônicos, aeronaves furtivas e programas navais e espaciais de classe mundial.”
A polícia chinesa montou um dos sistemas mais sofisticados do mundo de vigilância interna. Ficou mais claro para a opinião pública interna e externa, nestes últimos dias de confrontos nas fábricas e manifestações nas ruas e avenidas de todo o pais, que a política do zero Covid tem sido nada mais do que o grande laboratório de teste para a operacionalização deste sistema orwelliano de rastreamento e vigilância de todos os cidadãos do país. Ficou mais claro para todo mundo que é para isso que o zero Covid existiu até agora.
E logo verão que para o crescimento da economia os efeitos da flexibilização do zero Covid de Xi serão efêmeros e pouco importantes. Esta também é a opinião de Roach.
A tecnologia chinesa do ‘Big Brother’ Xi Jingping é uma das melhores do mundo. E os fanáticos torcedores do socialismo de mercado se orgulham muito disso. Desde outubro de 2021, aproximadamente, penduraram câmeras aos milhões nas esquinas e nas entradas dos edifícios. Compraram poderosos softwares de reconhecimento facial e os programaram para identificar todos os cidadãos das localidades. Um mega software especial centraliza e processa todos os dados e as imagens que são coletadas, e assim por diante. O Estado chinês torna-se progressivamente um agente de segurança e vigilância policial mais poderoso do que nunca. Seus áulicos torcedores também se orgulham muito disso.
As marchas e protestos da semana passada foram dos mais amplos e abertamente políticos desde os de 1989, que Pequim reprimiu com força militar letal na Praça da Paz Celestial. Agora, além das tropas antimotins da Mongólia, as autoridades chinesas podem sufocar as revoltas operárias e populares usando esta rede de arrasto de alta tecnologia para atingir os organizadores e lideranças mais visíveis e detê-los.
“Estamos ouvindo histórias de policiais batendo na porta das pessoas perguntando o paradeiro delas durante os protestos, e isso parece ser baseado em evidências coletadas por meio de vigilância em massa”, disse Alkan Akad, pesquisador da Anistia Internacional sobre a China. “A tecnologia chinesa do ‘Big Brother’ nunca é desligada, e agora o governo espera que mostre sua eficácia em acabar com a agitação”, acrescentou.
Em resumo, os protestos das últimas semanas da classe operária em todo o território chinês e manifestações da sociedade civil em geral desvelam a natureza da repressão militarizada do governo de Pequim. Essas rebeliões acabam de derrubar, nesta quarta-feira (7), como primeiro resultado prático de recuo dos capitalistas, a sacrossanta política de contenção de zero-COVID de Xi Jinping. Flexibilização geral! É o que anunciam as agências de notícias.
Acabou a zero Covid. Cai o disfarce e, doravante, revela-se o verdadeiro rosto de um estado policial e de rastreamento totalitário da classe operária e da sociedade civil em geral – um estado policial operacionalizado por um governo asfixiado pela ingovernabilidade política e por uma economia patinando à beira do abismo.
FAÇA SUA COLABORAÇÃO PARA QUE O TRABALHO DA CRÍTICA DA ECONOMIA NÃO SEJA INTERROMPIDO!!!! CHAVE PIX 02911418891