José Martins, da redação.
A catástrofe global chega antes na Europa. Entre tapas, sanções e ameaças nucleares, EUA e Rússia agem objetivamente para uma renovada dominação sobre o velho continente. Aquela parceria que fez tanto sucesso no período da Guerra Fria está sendo reformatada nos trágicos campos de batalha ucranianos.
Na aparência dos fenômenos geopolíticos, como na política, em geral, tudo aparece na forma fetichizada de um sistema hegeliano, de ponta cabeça. É preciso que alguém coloque as coisas no seu devido posicionamento.
É o que fez com muito discernimento, em entrevista na semana passada, o filósofo estadunidense Noam Chomsky. Para ele, uma consequência imediata da guerra na Ucrânia é o fortalecimento do modelo proposto pela OTAN, que impõe um atrelamento dos países da União Europeia aos objetivos estratégicos dos EUA, “reduzindo mais uma vez os esforços repetidos para se criar um sistema europeu independente”.
E conclui: “ Essa tem sido uma questão fundamental desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Por enquanto, Putin resolveu a questão ao proporcionar a Washington seu desejo mais profundo: uma Europa tão subserviente que uma universidade italiana tentou proibir uma série de palestras sobre Dostoievski, para citar apenas um dos muitos exemplos flagrantes de como os europeus se comportam como idiotas.”
Nesta dobradinha com Washington, o plano de Putin, com seu ataque à Ucrânia. é quebrar o status quo europeu pós-queda do “muro de Berlim”. Quer dizer, os russos procuram reestabelecer sua antiga área de influência da Guerra Fria. Supõe-se que os EUA reconheçam a “legitimidade” deste plano.
Claro que não existe nada combinado e, muito menos, concertado a respeito. Apenas estratégias. Mas, estratégia geopolítica é uma coisa, execução na realpolitik é outra. Na vida real das relações interestatais as coisas não acontecem com linearidade. Nem com conversas. Muito pelo contrário. Têm que ser conquistadas pela força das armas. É o que Putin está tentando na Ucrânia.
Para abafar sua crise social interna, Moscou age externamente para sonhar com a volta do velho império russo.
Neste movimento, apesar de todas essas saliências e reentrâncias do seu processo real, o desenlace mais provável é que os EUA reconhecerão a “legitimidade” dos planos de Moscou. Apenas o mais provável.
Quando o assunto é economia e guerra não se deve fazer previsões, apenas cenários. Uns mais prováveis outros menos. Assim, a única coisa já definida e revelada pelos atuais acontecimentos na Ucrânia é exatamente o seguinte: reforçar e, principalmente, escancarar sem nenhum constrangimento a natureza imperialista da OTAN (leia-se EUA) sobre a totalidade das velhas potências europeias.
Na cabeça de Washington o destino da Europa é tornar-se uma imensa América Latina econômica e geopolítica. Um território dominado de grandes consumidores de armamentos e, eventualmente, de gás liquefeito dos EUA.
E a Rússia, diferentemente do período da Guerra Fria, seria um coadjuvante menor, mas muito competente militarmente, muito útil para a dominação da OTAN sobre os vassalos alemães, franceses, ingleses, etc.
Entretanto, mesmo com esta posição subalterna, Putin pode ambicionar coisas grandes na atual guerra contra a Ucrânia. Por exemplo, o controle do ultra estratégico Mar Negro e, na rebarba, o pequeno, mas não menos importante Mar de Azov. Falta apenas completar a expulsão dos neonazistas de Mariupol e tratorar Odessa.
Isso está claramente incluído no seu “plano”. Estender o território de Donbass à estreita porém estratégica Transnístria, oblast russo (tipo de território com cara de país) espremida entre a Moldávia e a Ucrânia. E, de passagem, incluir neste “combo geopolítico” o maior porto do Mar Negro, situado exatamente na lendária Odessa – imortalizada por Sergei Eisenstein e seu “Encouraçado Potemkin”.
É provável que consigam. Clausewitz aplaudiria de pé. Já seria, sem dúvida, um valioso butim de guerra. A ser colocado na mesa de negociações de paz que virão no fim da guerra da Ucrânia.
De todo modo, na nova estratégia geopolítica mundial, está nos planos de Washington que Moscou seja seu capitão do mato na administração imperialista nos Bálcãs, Oriente Médio e Ásia Central. Falta combinar tudo isso com Erdogan, da Turquia, mas isso não seria o mais difícil.
Nota marginal: no meio deste emaranhado todo de possibilidades, o “plano de Putin” não pode incluir a reconstrução do muro de Berlim. Isso é bobagem. Os EUA e suas bases militares espalhadas pelo território alemão já são suficientes, presume-se, para abafar a “questão alemã”. As novas tarefas dos russos serão mais orientais. Mais para os lados de Vladivostok do que de Kaliningrado.
Das 742 bases militares estadunidenses espalhadas pelo mundo, 118 delas (16% do total) estão instaladas na Alemanha. Outras 119 estão no Japão. Estes dados são solenemente ignorados na quase totalidade das análises geopolíticas feitas para o grande público espectador do mundo.
Para estes animadores da opinião pública nos meios de comunicação e redes sociais, Alemanha e Japão são duas potências absolutamente “normais”, como Inglaterra, França, Canadá, etc. Para estes senhores da propaganda capitalista a própria realidade do imperialismo é coisa que também não existe na ordem geopolítica internacional.
Mas Joe Biden não pode negar que ele existe. Nem que ele desfilou como um pavão imperador pela Europa, na semana passada. Mas a cada referência de “unidade dos aliados da OTAN” ele apenas desfazia um pouco mais quaisquer ilusões que as decadentes burguesias europeias ainda poderiam ter sobre as novas e reais intenções de Washington na chamada “aliança transatlântica”.
Descrever os EUA como vencedores estratégicos na guerra de Putin contra a Ucrânia, como faz Noam Chomsky, é o melhor diagnóstico do que está se passando de novo na Europa e na ordem geopolítica mundial. Isso é muito importante para o entendimento da situação na Europa.
Mas não é suficiente. Agora tem que se olhar para frente. E responder a seguinte pergunta: os planos de Rússia e EUA para a Europa, tal como sucintamente descritos acima, têm grande chance de serem realizados?
Pouquíssimas chances. O caos é o mais provável. Acontece que maquiavélicos planos imperialistas como estes de Washington e de Moscou não podem ser realizados senão em situações históricas concretas. E, neste caso particular da Europa, há uma pedra no meio do caminho, uma enorme pedra. Mais concreta do que tudo que se pode imaginar.
Pela primeira vez no pós-guerra (1945), a enorme pedra da catástrofe econômica ameaça provocar o iminente desabamento da indústria europeia e, assim, ameaçar a própria vida do mais tradicional e revolucionário proletariado do mundo, principalmente os localizados na Alemanha e na França.
É a luta de classes no interior das velhas metrópoles europeias que decidirão o resultado da crise econômica geral e o desenlace da guerra imperialista que ora se inicia com a guerra da Ucrânia. Crise, guerra e revolução é o roteiro mais provável. Que se inicia com desafios dificilmente superáveis na maior economia da Europa.
Segundo a Deutsche Welle, o maior canal de notícias da Alemanha, a inflação na economia reguladora da área europeia saltou para um nível recorde desde a chamada “reunificação alemã”, em 1990.
As expectativas de crescimento desabaram subitamente em meio a temores de que o conflito na Ucrânia atingirá duramente a maior economia da Europa. Os preços ao consumidor subiram até 7,3% em relação ao ano anterior em março, de acordo com a agência oficial de estatísticas Destatis, acima dos 5,1% em fevereiro.
Disparada alarmante. “Desde o ataque da Rússia à Ucrânia, os preços do gás natural e dos produtos de petróleo mineral aumentaram acentuadamente novamente e tiveram um impacto considerável na alta taxa de inflação”, disse o escritório em comunicado.
O painel de consultores econômicos independentes do governo alemão reviu a previsão de crescimento do produto interno bruto (PIB) para apenas 1,8% este ano. Estão sendo muito otimistas.
Em novembro, este painel consultivo previu um salto de 4,6% para 2022, mas isso agora foi cortado para esta otimista taxa de 1,8%. “Já estávamos passando por um momento ruim graças à onda ômicron e agora as coisas estão ainda mais sombrias”, disse ao Deutsche Welle a senhora Monika Schnitzer, do Conselho Alemão de Especialistas Econômicos. “E se o fornecimento de energia russo parasse completamente, isso comprometeria qualquer recuperação econômica”, acrescentou frau Schnitzer.
Os números devem aumentar a pressão sobre o Banco Central Europeu para aumentar as taxas de juros e combater a alta dos preços. Mas isso terá impacto imediato e catastrófico na produção real. O desemprego aumentará exponencialmente e a fome se alastrará pelo país.
Os trabalhadores acompanham de perto a situação. A Alemanha verá suas principais indústrias, como aço, produtos químicos e papel, fechadas em poucas semanas se ficar sem gás, petróleo e carvão da Rússia, alertaram nesta semana os principais sindicatos industriais do país.
Os chefes dos principais sindicatos do país IG Metall, IGBCE e IG Bau realizaram uma coletiva de imprensa conjunta em Berlim na terça-feira (29) para alertar sobre o possível fracasso do governo alemão de cortar a dependência da energia russa em resposta ao conflito em andamento na Ucrânia.
As sanções econômicas e embargos imperialistas decretados por Washington sobre Moscou podem não ter surtido os efeitos desejados. A economia russa continua funcionando satisfatoriamente. Até o rublo já recuperou o valor pré sanções. O abastecimento interno não foi muito abalado, etc..
Entretanto, sobre as principais economias europeias os efeitos destas sanções e embargos imperialistas de Washington podem fazer muito estrago. Já estão fazendo. “A explosão dos preços da energia, mas acima de tudo um possível embargo do gás, atingiria duramente a indústria que consome intensivamente energia – a mãe da rede industrial” destacou Michael Vassiliadis, presidente do sindicato dos trabalhadores químicos IGBCE da Alemanha.
O que era, na aparência, para destruir a economia russa, na realidade está destruindo a economia europeia. “As consequências não seriam apenas a redução das horas de trabalho e perdas de empregos, mas também o rápido colapso das cadeias de produção industrial na Europa – com consequências mundiais”, acrescentou Vassiliadis.
Robert Feiger, que dirige o sindicato dos trabalhadores da construção IG BAU, aponta: “A interrupção das importações russas de gás, petróleo e carvão colocará em risco 3,4 milhões de operários da indústria de construção alemã, uma vez que depende totalmente de cal e cimento, que requer muita energia para produzir”. E insistiu: “ O governo federal deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para garantir o fornecimento de energia, apesar da atual situação de crise”.
Seu colega do sindicato dos metalúrgicos IG Metall, Jörg Hofmann, também falou sobre o perigo de interromper as cadeias de produção industrial alemãs por serem “de fundamental importância para a Europa por sua função econômica”. Pediu ao governo alemão apoio às empresas e que proteja os operários em caso de cortes de produção causados por “custos excessivos de energia”.
A guerra na Ucrânia acelerou um processo que já estava em curso, uma rota materialmente predefinida desde o último trimestre de 2019, em direção á crise catastrófica do capital global.
As turbulências geopolíticas agem imediatamente em seguida como catalizadoras da derrocada do capital e dos preços em geral. O tempo da valorização do capital desaparece.
Desemprego em massa dos produtores de valor e de capital, o proletariado mais tradicional do planeta e seus filhos são ameaçados de morte pelos capitalistas. No desemprego das linhas de produção e a geração de emprego nas linhas de destruição.
O aprofundamento da dominação armada de Washington (e de Moscou como coadjuvante) em todo o território do velho continente já apresentam sua primeiras consequências. Todos o fatos e números que se observe neste momento destacam a possibilidade real de explosão social na Europa como resultado do conflito ucraniano.
Explosões sociais não só na Alemanha, como também no resto da Europa e resto do globo, devido a isto que os trabalhadores estão diagnosticando como “colapso da cadeia de produção na indústria”.
Desemprego em massa do proletariado abre as portas para a revolução. Como necessidade de realização da crítica armada dos improdutivos responsáveis pelo caos e morte dos produtivos.
A entrada com força concentrada da classe proletária na política das nações e na geopolítica mundial. A economia política dos trabalhadores impondo a geopolítica proletária em todas as nações.
A revolução será imediatamente internacional ou não será nada.