Em Abril de 1851, Karl Marx publica artigo no jornal The People’s Paper criticando a decisão de Sir William Gladstone – todo poderoso Chancellor of the Exchequer [Ministro do Tesouro] do império britânico – de aumentar intempestivamente a taxa básica de juros do Banco da Inglaterra, o Fed, banco central dos EUA) da época.
Gladstone procurava com a medida apenas adaptar politicamente o orçamento público aos interesses mais parasitários do sistema. Favorecer aos capitais produtores de juros e da moderna renda fundiária. Acontece que para engordar ainda mais os lucros desses parasitas acabou apertando antes da hora o gatilho da da já latente crise econômica.
A preocupação de Marx com os bons mandamentos morais da economia política de repartição da mais-valia era o de menos. O que ele lamentava é que naquele momento a superprodução de capital ainda não tinha acumulado todo seu potencial para uma nova e robusta crise periódica. O potencial ainda era mais para uma crise parcial e não para uma crise geral (catastrófica).
O acompanhamento da evolução da taxa de juros na economia capitalista – tão importante para os lucros do mercado de dinheiro-capital (não confundir com capital-dinheiro) – só desperta o interesse da economia política dos trabalhadores pela sua função estratégica na antecipação ou na prorrogação da data de explosão do período de expansão. Agora, com a barbeiragem de Gladstone, essa nova explosão periódica viria menos destrutiva. As condições para a revolução seriam menos favoráveis.
Fundamental: quanto pior for para os capitalistas melhor será para o proletariado. Em termos práticos: quanto mais longo o período de maturação e de potencialidade destrutiva da superprodução do capital melhores as condições e possibilidade de revolução e de emancipação do proletariado. Marx tinha plena consciência de que são os homens que fazem a sua própria história, mas, complementava, a fazem sob condições materiais herdadas. É muito clara essa perspectiva materialista e seu correspondente determinismo econômico na teoria e na práxis do grande teórico da Associação Internacional dos Trabalhadores (1ª Internacional). É por isso que, do mesmo modo que Engels, seu parceiro inseparável, Marx não criticava só os economistas e autoridades do Estado quando o engravidamento normal da superprodução catastrófica era interrompido por alguma ação equivocada de política econômica. Criticava com a mesma irritação ações políticos propriamente ditas que agem no mesmo sentido abortivo do ciclo. Em carta a Engels, Marx lamentava uma decisão dos mineiros ingleses em decretar uma greve geral por aumento de salários. Na hora errada. Exatamente quando aquele período de superprodução encaminhava-se para o desenlace, mas ainda não tinha alcançado toda sua potencialidade destrutiva. A greve foi vitoriosa, mas, do mesmo modo que aquela antiga elevação da taxa de juros de Gladstone, disparou o gatilho da nova crise em hora menos favorável para se manifestar como uma crise geral, e, portanto, para as necessidades revolucionárias do proletariado.
Essas reminiscências teóricas ganham força e atualidade neste quarto trimestre de 2017, quando o molto vecchio [muito longo] período de expansão e de superprodução do capital, iniciado no segundo trimestre de 2009, ainda se se encontra em marcha forçada rumo ao paraíso. Não só nas bolsas de valores e outros locais menos nobres do mercado de dinheiro e de rendas em geral, mas principalmente na produção e nos lucros.
O otimismo dos capitalistas com a situação se manifesta, em primeiro lugar, de forma mais protocolar, nos relatórios de suas instituições imperialistas de apoio. Como o Fundo Monetário Internacional (FMI), que em seu relatório trimestral Panorama da Economia Mundial (World Economic Outlook) de outubro prevê um crescimento de 3,6% da economia mundial em 2017 frente ao percentual de 3,2% em 2016.
Esse cenário é mais otimista que o apresentado nas edições anteriores do relatório (abril e julho do ano corrente) e aponta para a maior aceleração da atividade econômica global desde a retomada após o último período de crise (2008-09). Além disso, destacam seus economistas, será o melhor desempenho desde 2012 (+3,5%) e a trajetória ascendente persistirá em 2018, quando o crescimento previsto é de 3,7% (o mais elevado desde 2011).
O otimismo burocrático do FMI não encontra eco em mentes mais aguçadas que povoam os relatórios de estrategistas de mercado e grandes consultorias financeiras globais.
Em Wall Street, enquanto o maior rally dos últimos setenta anos aumenta alucinadamente o volume das transações, a velocidade e valorização das ações e de outros ativos financeiros, aumenta na mesma proporção as preocupações com a iminente interrupção desta farra do touro – que extrapola Wall Street e se espraia com maior ousadia para todas as praças financeiras do mundo. Inclusive economias absolutamente travadas, como a brasileira, onde a bolsa de valores não para de bater recordes históricos.
Muita gente bem informada começa a se preocupar seriamente com o fato que essa euforia do mercado com as ações pode significar que se aproxima a perigosa fronteira em que a maior parte do mercado começa a se mover para a forma de “mercado touro”. Como a estrategista do mercado de ações do Merrill Lynch/ Bank of America (Bofa), em entrevista a CNBC. Para ela, “o rally continua, mas essa é a forma pela qual os mercados touro se acabam”.
Neste mercado predominantemente comprador a relação entre compradores e vendedores de ações inclina-se descontroladamente para os primeiros, os quais não levam mais em conta os fundamentos do mercado (lucros das empresas). Nem os lucros previstos e nem mesmo prejuízos altamente significativos. A “exuberância irracional” de Greenspan retorna e domina o mercado.
Entretanto, no chão duro da vida real, como notam esses competentes analistas, a consolidação de um “mercado touro” significa a aproximação do ponto em que a lei da gravidade econômica (ou lei do valor) atua na forma de crash, quer dizer, de uma repentina e profunda correção dos preços das ações e outros ativos financeiros negociados no mercado. Este, como movido por um efeito físico de alavanca, se transmuta e desliza para o “mercado urso” do pânico e da paralização das operações.
A tendência dessa evolução nas bolsas de valores é medida por empresas de consultoria em Wall Street. Como a Investors Inteligence, cuja última pesquisa indica que o “touro” já predomina em 60% do mercado. Seu editor, John Gray, considera essa porcentagem como “zona de perigo”.
Além disso, afirma que os padrões de comportamento do mercado nas últimas semanas se assemelha muito com o que aconteceu em 1987, com a aproximação do 30º aniversário do “Black Monday”, quando o índice Down Jones Industrial mergulhou 508 pontos em um único dia. Explica que os “touros” atingiram o máximo de 60% naquele ano, caiu, depois de moveu novamente acima de 60%, no final do ano, quando o mercado foi finalmente atingido pelo crash. Foi o primeiro pânico efetivo na Bolsa de Nova York desde o grande crash de 1929, como já observamos em boletim recente.
Gray conclui, afirmando que “aquele mesmo cenário de 1987 repetindo-se agora sugere um potencial significativamente perigoso para Outubro/Novembro 2017”. Segue corretamente a mesma linha de análise da estrategista do Merrill Lynch/ Bank of America, que também conclui sua entrevista considerando “muito inquietante o fato que os fundamentos não estão dirigindo o ônibus”.
É neste clima de otimismo e de elevação da temperatura dos mercados que surge um acontecimento político que coloca também um risco imediato à continuidade deste altamente contraditório e não menos colorido carrossel de desenfreada acumulação que se espraia por todo o globo.
Em Wall Street e em outras importantes praças financeiras do mercado mundial teme-se o que pode acontecer com a possível mudança, anunciada em Washington, nas últimas semanas, na direção do Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) em fevereiro de 2018, quando termina o mandato de Janet Yellen.
A atual presidente do Fed é considerada pelo mercado como uma “dovish” [pomba], quer dizer, partidária da manutenção da baixíssima taxa básica de juros atual e da expansão do crédito. Isso é indispensável para os “touros” continuarem com sua festa.
A escolha será feita até novembro pelo presidente dos EUA, Donald Trump, a partir de uma lista de cinco candidatos, que inclui a presidente atual, mas também economistas contrários à atual política monetária do Fed. São os “hawkish” [“falcões linha-dura”] e, portanto, partidários da elevação da taxa de juros e de “normalização” da política monetária.
Engels dizia que “a forma sob a qual se esconde a superprodução de capital é sempre uma maior ou menor extensão do crédito”. É justamente essa generosa política monetária atual de baixas taxas de juros e de oceanos de crédito, colocada a disposição do mercado, que não foi alterada desde 2009, que agora pode mudar de rumo.
O que aparece como um simples problema monetário ou de valorização de bolsas de valores se revela, então, como a chave para se discernir a antecipação do encerramento ou a prorrogação do atual período de expansão. Uma elevação, neste momento, da taxa de juros do planeta, quer dizer, aquela que é decidida pelo Fed, resultaria em brusca redução do crédito que lubrifica e movimenta os mercados e a superprodução global.
Pelo menos 90% dos homens do mercado acredita que nada deve mudar na troca de comando do Fed. Já “precificaram” em suas carteiras de investimentos que Trump já se decidiu pelo banqueiro Jerome Powell, que daria continuidade à política monetária atual da “dovish” Janet Yellen.
É claro que as apostas permanecem abertas. E não se descarte a possibilidade de uma inesperada e intempestiva escolha de Trump por um “hawkish” para a presidência do Fed, o que, como já observamos, poderia antecipar e disparar a explosão da já latente superprodução de capital global.
Portanto, façam suas apostas tendo em mente que nada garante com toda segurança do mundo que o voluntarioso presidente norte-americano não intervirá nessas cintilantes e sensíveis relações dialéticas que comandam a economia atual da mesma maneira que o fez William Gladstone, quase cento e setenta anos atrás.
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