A revista The Economist tem uma estranha maneira de analisar as relações entre as grandes potências mundiais: a história da geopolítica global do último quarto de século contada com um monte de reprimendas morais e de incompetência de todos os pequenos homens que ocuparam recentemente a presidência dos EUA. Das relações entre Washington e Moscou, principalmente. Vejamos, em suas próprias palavras – em matéria de capa de sua última edição impressa semanal – essa patológica maneira de tratar tão importante assunto.
“George W. Bush olhou para os olhos de Vladimir Putin e pensou que via a sua alma. Ele estava errado. Barack Obama tentou “restabelecer” relações com a Rússia, mas no final de seu mandato a Rússia tinha anexado a Criméia, provocado conflitos por todo lado na Ucrânia e preenchido o vácuo de poder que Obama deixou na Síria. Donald Trump parece querer ir muito mais longe e forjar um alinhamento estratégico inteiramente novo com a Rússia. Ele pode ser bem sucedido ou será o terceiro presidente americano seguido a ser ludibriado pelo Sr. Putin?” The Economist – Donald Trump seeks a grand bargain with Vladimir Putin. It is a terrible idea. … [Donald Trump quer fazer um grande negócio com Vladimir Putin. É uma péssima ideia].
Essa avaliação só enaltece Putin. Afinal, pela descrição da revista, o mundo encontra-se diante de um insólito acontecimento: nunca na história da diplomacia mundial um único estadista teve a capacidade tão grande de enrolar por tanto tempo tantos e seguidos dirigentes máximos da maior potência econômica e militar do planeta. Como explicar essa façanha? Para a The Economist é muito simples: a burrice dos seus presidentes de acreditar na sinceridade de propósitos de Putin.
Se essa inédita façanha tivesse realmente acontecido, seria obrigatório supor-se também pelo menos um quarto de século perdido pelos EUA na ordem geopolítica mundial. Existiria coisa mais grave que isso para a desestabilização da ordem imperialista dos últimos setenta anos? Qual foi então a causa e as consequências desta grande debacle da grande metrópole do imperialismo mundial? Essa pergunta é tão falsa quanto a pretensa debacle e quanto as razões apresentadas pela revista para temer que o novo e ingênuo presidente dos EUA (do mesmo modo que seus ingênuos antecessores) seja enganado pelo “assassino” de Moscou.
Acontece que essa alienação da realidade geopolítica mundial (principalmente no que se refere à Europa) tem um grande precedente ideológico. Na parte da matéria em que a revista discorre que sobre um também imaginário grande conflito dos EUA com a China, ela lembra que Trump não deve esperar uma aliança sincera da Rússia para atacar a China. E repete mais uma vez o indefectível mantra da narrativa da quase totalidade de analistas e propagandistas da ordem imperialista global: “A pirataria russa pode ter ajudado o Sr. Trump nas pesquisas, mas isso não significa que ele possa confiar em Putin. Os interesses do Kremlin e da América são mundos separados.”
Mas quem disse que em termos estratégicos EUA e Rússia são mundos separados? O grande mantra ideológico da narrativa imperialista (partindo dos EUA, off course) é que os EUA representa organicamente a defesa e os interesses de uma estranha entidade chamada Ocidente, que inclui, sem grandes explicações, o orientalíssimo Japão. Nesta desconjuntada ordenação geográfica de dominação quais são então os inimigos geopolíticos dos EUA e, portanto, do Ocidente? Simples: a Rússia e a China. Quem mais? Seus primos muçulmanos e terroristas. Assunto encerrado.
Esse frágil maniqueísmo ideológico – presente também na maioria dos analistas marxistas das relações internacionais – desconsidera solenemente dois fatos muito importantes que jogam pesado na nova ordem geopolítica mundial forjada nos últimos anos com a sólida aliança estratégica de Washington e Moscou. Primo, a ostensiva ocupação e dominação militar dos EUA sobre a Europa e o Japão. Essa dominação ocorre através da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla em inglês) e suas gigantescas bases militares no Japão e no coração de Berlim, capital da Alemanha. Secondo, o mais importante: como Alemanha e Japão se libertarão do monitoramento dos EUA e voltarão a produzir livremente e de maneira massiva seus próprios armamentos? Quais os planos estratégicos dos EUA com o futuro da NATO? Como a Alemanha e seus atuais parceiros da União Europeia reagirão ao enfraquecimento da NATO induzido pelos EUA? E o Japão, com o fortalecimento da aliança EUA e China?
Em momento de rara lucidez, a revista teme pelo futuro da Europa: O risco mais grave de Sr. Trump calcular mal, no entanto, é na Europa. Aqui a lista de Putin se divide em três classes: coisas que ele não deve alcançar até que ele se comporte melhor, como o levantamento das sanções ocidentais; coisas que ele não deve alcançar em quaisquer circunstâncias, tais como o reconhecimento de sua tomada do território ucraniano; e as coisas que possam prejudicar a ordem global baseada em regras, como a conivência americana no enfraquecimento da NATO
Do mesmo modo que os ideólogos e analistas em geral da ordem mundial, a revista falseia a questão, escondendo que o namoro de Trump com Putin não é um problema estadunidense, mas europeu e japonês. E que esse namoro na verdade não foi inventado por Trump e Putin. Washington e Moscou já estão casados (solidamente casados, diga-se de passagem) pelo menos desde a 2ª Grande Guerra (1939-1945). Sempre de olho vivo nas movimentações e aspirações armamentistas de Alemanha e Japão.
É por isso que ao descrever o desejo de Trump de “forjar um alinhamento estratégico inteiramente novo com a Rússia” a veneranda revista descreve uma coisa velha que já estava sendo tecida e praticada por John Kerry e Sege Lavrov desde o último choque econômico global de 2008/2009. Vejam nosso inúmeros boletins e posts nos últimos anos tratando deste assunto.