EDIÇÃO 1315; 1316 – Ano 30; 3ª 4ª Semanas de Outubro 2016.
Breaking Bad (Temp.1 Ep. 17) Quem Tem Medo de Donald Trump?
JOSÉ MARTINS
O candidato do Partido Republicano à presidência dos EUA resolveu engrossar o discurso a poucos dias de uma eleição que é magnificada e acompanhada com muito interesse em todo o mundo. E com extrema preocupação. Em artigo recente no liberal Financial Times, o seu redator de economia Martin Wolf reproduz bem o pavor que a possibilidade da eleição de Donald tomou conta das melhores famílias burguesas: “Às vezes a História dá saltos. Pense na Primeira Guerra Mundial, na revolução bolchevique, na Grande Depressão, na eleição de Adolf Hitler, na Segunda Guerra Mundial, no começo da Guerra Fria, no colapso dos impérios europeus, na reforma e abertura da China por Deng Xiaoping, no colapso da União Soviética, na crise financeira de 2008-2009 e na “grande recessão” subsequente. Podemos estar à beira de um acontecimento tão transformador quantos muitos dos citados: a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Isso representaria o fim do Ocidente sob a liderança norte-americana como força central nos assuntos mundiais. O resultado não seria uma nova ordem, mas uma perigosa desordem.” (Financial Times, 27/09/2016)
O ilustre economista poderia ter incluído em sua lista de grandes acontecimentos transformadores da era moderna a Batalha de Gettysburg (1-3 de julho de 1863), que praticamente decidiu a histórica Guerra Civil dos EUA. Foi uma das maiores batalhas da história mundial. No final dos três dias de batalha contabilizava-se 23.231 baixas – 4708 mortos, 12.693 feridos e 5830 capturados ou desaparecidos. Foram vitoriosas as tropas da burguesia Yankee, do Norte, comandados pelo general Meade, representando a União do presidente Abraham Lincoln. Foram derrotadas as tropas comandadas pelo general Lee, do Sul, representando a burguesia Confederada escravagista, latifundiária, agroexportadora e apoiada pelo imperialismo inglês.
A vitória dos Yankees na Guerra Civil foi saudada por Karl Marx em seus artigos no New York Daily Tribune e em algumas cartas pessoais para Lincoln. Cerca de um século depois, Darcy Ribeiro caracterizava: “o Brasil é os EUA em que o Sul ganhou a guerra”. Corretíssimo. Do mesmo modo, se as tropas de Lee tivessem sido vitoriosas na Batalha de Gettysburg, e, consequentemente, o Sul tivesse ganhado a Guerra Civil, o que conhecemos hoje como Estados Unidos da América não passaria de mais um orgulhoso e ridículo membro dos BRICS.
Mas por que a Batalha de Gettysburg tem a ver com Donald Trump e a eleição no dia 6 de Novembro? Primeiro, porque o diabólico candidato resolveu homenageá-la. O definitivo “manifesto” da campanha de Trump ocorreu solenemente na cidade de Gettysburg, neste sábado (22). O local não foi escolhido aleatoriamente. Serviu para comparar o candidato a Abraham Lincoln e passar uma imagem séria de mudança que, segundo ele, está em sincronia com o “Gettysburg Adress” de Lincoln, de 1863. Portanto, a repetição de um celebre discurso para o povo e para a nação. “Drenaremos o pântano de Washington, DC, e o substituiremos com um novo governo do povo e para o povo. É por isso que escolhi Gettysburg para anunciar este compromisso” (The Wall Street Journal “Trump Touts Plan for First 100 Days of Presidency”, 22/10/2016).
Trump resolvei falar grosso. Fez um de seus discursos mais fortes até agora. Quase um ultimato para a nação e para o mundo. Anunciou uma série de medidas drásticas que, diz ele, vai tomar em seus primeiros cem dias de governo, caso seja eleito. Tudo aquilo e mais alguma coisa que preocupa não só Martin Wolf, mas japoneses, chineses, franceses, alemães sauditas, israelitas, ucranianos, mexicanos, etc. Apenas alguns exemplos anunciados. Vai cancelar todos os decretos emitidos por Obama. Revoga a lei de saúde Obamacare. Retira os EUA dos programas de mudanças climáticas. Grandes cortes de impostos. Mudará a política de juros baixos do Federal Reserve e dá a entender que, se necessário, dará calote na dívida pública, que já beira 115% do PIB. Voltará a incentivar a produção da chamada energia suja, como xisto, petróleo, gás natural e carvão. Nova lei de imigração. Deportará imediatamente mais de dois milhões de imigrantes ilegais que têm ficha na polícia. Cancelará a emissão de vistos para os países que não aceitarem essas pessoas de volta. Prenderá por dois anos quem tentar reentrar nos EUA depois da deportação. Implementar imediatamente nova agenda de comércio de renegociação do Nafta, retirada dos EUA da Associação Transpacífica a parceria Transpacífica e pedir ao Secretário do tesouro, a decretação de etiqueta da China de “manipuladora de moeda”, o que seria na prática o rompimento comercial com o “chão de fábrica do mundo”.
Pode-se dizer que a plataforma de Trump está na raiz de um sentimento nacionalista e que se sustenta ideologicamente no Tea Party. Trata-se de uma tendência patriótica e protecionista muito ativa (mas minoritária) do Partido Republicano de Trump, criada em 2009, e conta com a adesão de cerca de 30% dos republicanos. O nome é uma referência ao Boston Tea Party de 1773 [Festa do Chá de Boston, tradução livre], uma ação direta dos colonos de Boston, Norte dos EUA, contra o governo inglês e a Companhia das Índias Ocidentais, que detinha o monopólio do chá que entrava nas colônias. No porto de Boston, um grupo de colonos abordou os navios carregados de chá e atirou a carga às águas, em protesto contra o monopólio e o imposto sobre o chá, que consideravam abusivo.
Além dessas curiosidades historiográficas, o mais importante a observar é que o Tea Party é produto direto do último choque periódico global de 2008/2009. Procura a salvação nacional frente a uma inevitável catástrofe econômica. O movimento surgiu a partir de uma série de protestos coordenados, tanto no nível local como nacional, que se realizaram a partir do início de 2009. Os protestos foram, em parte, motivados por diversas leis federais, como o Plano de Resgate Econômico de 2008, a Lei de Recuperação e Reinvestimento dos Estados Unidos de 2009 e a Lei de Proteção ao Paciente e Assistência Médica Acessível (reforma de Obama do sistema de saúde, popularmente conhecida como “Obamacare”). O Tea Party defende uma política fiscal conservadora e o “originalismo”, isto é, a interpretação do texto constitucional segundo o seu significado à época em que foi adotado. De acordo com diversas pesquisas de opinião, cerca de 10% dos norte-americanos consideram-se parte ativa do Tea Party.
Segundo as últimas pesquisas eleitorais as chances de vitória de Trump na corrida contra Clinton são pequenas. Mas são essas pequenas chances que assustam o distinto público acostumado com a expansão econômica e os lucros pessoais da globalização. Acontece que essa realidade de benesses da globalização para a burguesia e pequena-burguesia norte-americanas será seriamente abalada na explosão do próximo choque global que se aproxima. Nunca existiu essa realidade de vantagens da globalização para a maioria da população dos EUA. Esta está massacrada por mais de trinta anos de aprofundamento do arrocho salarial e pauperização, prolongamento da jornada, desqualificação tecnológica, crônico desemprego formal e principalmente informal, bairros operários e habitações cada vez mais insalubres, aluguéis impagáveis, atendimento médico inacessível ou impeditivamente custoso, acelerada degradação da vida nas cidades, das armadilhas mortais das ruas, repressão policial permanente sobre negros, latinos e asiáticos, que compõem atualmente a maioria do proletariado nos EUA. O Tea Party procura apresentar soluções patrióticas e protecionistas para encarcerar e reprimir a revolta de seu exército industrial de reserva contra a pátria do terror imperialista e da propriedade privada dos meios sociais de reprodução.
Trump atualiza a plataforma do Tea Party. O seu discurso de Gettysburg é uma indicação de medidas emergenciais frente ao choque econômico que se aproxima. O que ele precisaria fazer efetivamente na Casa Branca. Se dependesse apenas dele sua eleição levaria à concretização de medidas nacionalistas e de isolacionismo econômico mil vezes mais desestabilizadoras do que o Brexit recentemente aprovado em referendo popular na Inglaterra. Isso ocorre porque estamos a tratar não apenas de uma das economias do G-7 (Grupo das 7 maiores economias do mundo), mas a própria reguladora da produção global, dos preços internacionais, do comércio e das finanças globais.
Do mesmo modo que ocorria até o dia da votação do referendo inglês em que venceu a aparentemente absurda ideia do “sim” ao Brexit, agora também a mídia e os pesquisadores eleitorais indicam a derrota da absurda ideia de vitória de Trump. A eleição presidencial da maior potência econômica e militar do planeta será em 6 de Novembro próximo, mas mais de 4,4 milhões de votos já tinham sido registrados até esta sexta-feira (21/Outubro), já que muitos Estados permitem a votação antecipada ou pelos correios. Dados da Agência Associated Press (AP) indicam que Clinton parece estar ganhando força na Carolina do Norte e na Flórida, além de alguma vantagem no Arizona e no Colorado. São pequenos estados onde a participação de latinos é muito grande. Já Trump parece estar indo bem em Estados maiores como Ohio, Iowa e Geórgia.
De todo modo, o que Trump exprime em sua campanha é mais importante que o resultado da eleição. Nem é muito importante a hipótese bastante realista de que ele se utiliza oportunisticamente da situação atual de apodrecimento do tecido social capitalista da nação apenas para ganhar nas urnas. Se ele vai ganhar ou perder a disputa com Clinton não é o fato mais importante do problema que estamos abordando. A influência pessoal do presidente da República em um Estado totalitário como o dos EUA é cada vez mais insignificante. Existem outras instituições menos populares que administram o essencial do sistema. Não vivemos mais na era dos “grandes homens”. Foi a um bom tempo devidamente sepultada pelo Estado capital.
Mais além das eleições, o mais importante é a percepção do problema da ingovernabilidade em jogo, cujo desdobramento depende muito pouco de Trump ou de Clinton na Casa Branca. Mesmo que de maneira superficial e bastante ingênua quanto ao verdadeiro estado da economia e da sociedade norte-americana essa percepção do problema aparece isolada em um canto da mesma coluna acima citada de Martin Wolf: “É evidente que numerosos eleitores norte-americanos perderam a confiança nos sistemas políticos e econômicos do país. Isso parece ter acontecido em uma dimensão não vista nem mesmo nos anos 30, quando os eleitores se voltaram a um político estabelecido. Mas, apesar de todos os desafios que enfrentam, os Estados Unidos não estão em forma tão terrível. São o grande país mais rico na história do planeta. O crescimento é lento, mas o desemprego é baixo. Caso os eleitores escolham Trump – a despeito de suas falhas, exibidas uma vez mais no primeiro debate presidencial, isso nos revelaria coisas sombrias sobre a saúde dos Estados Unidos”