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Breaking Bad (Temp.1 Ep. 15) Desabamento da libra tumultua mercados e ameaça incendiar a Europa

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EDIÇÃO 1311/1312/1313 – Ano 30; 2ª 3ª e 4ª Semanas de Setembro 2016.

Breaking Bad (Temp.1 Ep. 15)Desabamento da libra tumultua mercados e ameaça incendiar a Europa.

JOSÉ MARTINS

A saída da Inglaterra da União Europeia (Brexit) está ficando mais feia do que se imaginava. Sua tradicional moeda é a principal vítima. A primeira vítima. A moeda inglesa está sendo triturada nos mercados cambiais globais. Começou caindo nos mercados asiáticos: pouco depois de 8 horas desta sexta-feira (7/outubro), horário de Tóquio, a libra caia a 1.1841 dólar. Nível mais baixo em trinta e um anos frente ao dólar e em sete anos frente ao euro. Os homens do mercado procuram uma explicação para esse “flash crash” [“colapso relâmpago”, tradução livre] da quarta moeda mais forte do mundo e não oferecem nada que seja razoavelmente plausível.  

“Eu inicialmente não acreditei no que estava vendo em minha tela”, relata Kenji Yoshii, estrategista em câmbio da Mizuho Securities. Para ele também não está claro o que detonou esse “flash crash” da libra. Como a maioria no mercado e na mídia global, ele culpa os “operadores robôs”, algoritmos programados para – em função dos preços e volumes de determinados ativos negociados no mercado financeiro – aumentar ou diminuir autonomamente e em alta frequência as operações de compra ou venda destes ativos.

Uma roleta digitalizada no cassino financeiro global. Modelos econométricos instalados como algoritmos nos computadores decidem o que, quando e quanto comprar ou vender, independente de ordens de operadores normais de carne e osso. Em milésimos de segundo o sistema detona automaticamente ordens de compra ou de venda de volumes gigantescos de ativos. Assim, quando ocorre alguma súbita e exagerada variação nos volumes ou preços de um ativo como a libra e os “estrategistas em câmbio” como Kenji Yoshii não têm a mínima ideia de qual fator econômico real detonou aquela variação eles culpam alguma falha no sistema de algoritmos de alta frequência destes “operadores robôs”.

É claro que essas bobagens herdadas de uma excrescência da economia vulgar conhecida como “teoria dos jogos” não explicam rigorosamente nada do ocorrido. No chão duro da realidade econômica o jogo é outro. Não cabe em inúteis modelos econométricos. Ao contrário do que se especulou o dia inteiro no mercado e na mídia imperialista o que aconteceu, nesta sexta-feira, com a libra não foi nenhum tipo de raio no céu azul do mercado cambial. Ou que logo as coisas voltam ao normal. Para quem pensa assim, recomenda-se investigar em um prazo mais extenso a gênese dessas atuais vicissitudes da libra. O gráfico abaixo, que ilustra a sua variação da taxa de câmbio frente ao dólar nos últimos 10 anos, pode ser útil nesta tarefa.

  

Trata-se de uma coisa parecida com um eletrocardiograma da libra esterlina. Mas aqui está se medindo movimentos econômicos reais. A observação da evolução imediata do valor ou da taxa de câmbio de uma moeda nacional não esclarece muita coisa. Mas a observação de sua evolução no decorrer de pelo menos dois ciclos econômicos, como é ilustrado no eletrocardiograma acima, confirma uma regra geral muito importante: o fortalecimento ou o enfraquecimento de uma moeda nacional depende da evolução da produtividade do trabalho da sua economia real (produção industrial).

O nítido enfraquecimento da libra frente ao dólar registrado no eletrocardiograma acima retrata, em primeiro lugar, o aprofundamento da inferioridade produtiva da Inglaterra frente aos EUA nos últimos dez anos – particularmente a partir do choque periódico ocorrido entre 2008 e 2009. O mesmo ocorreu na relação da totalidade da Europa com os EUA. Existem números abundantes a respeito, mas não temos tempo e espaço agora para documentar esse fato.

Observa-se no eletrocardiograma que a desvalorização da libra ocorrida no último período de crise se mantem relativamente estável em baixo patamar, até meados de 2014. Ali, registrou-se a taxa de câmbio mais elevada (US$1,72) do período atual de expansão. Não ocorreu em nenhum momento do atual período de expansão a recuperação do valor da libra aos níveis acima de US$2.00 do período de expansão do ciclo anterior (2002/2007). A partir de meados de 2014, inicia-se uma forte tendência à sua desvalorização frente ao dólar, fenômeno que se agrava a ponto de cair bem abaixo do buraco mais profundo de 2009. Essa descontrolada desvalorização da divisa inglesa reflete também uma desvalorização do capital nacional (taxa de lucro) e uma simultânea perda relativa de poder produtivo frente aos EUA.

Verifica-se que a crise da libra não é, como já dissemos anteriormente, um raio no céu azul. Ao contrário, isso tem a ver com seu crônico processo de incapacitação produtiva (e, portanto, competitiva) na concorrência entre as grandes potências. Repita-se que isso é também um problema europeu. O mesmo processo de esgarçamento monetário e produtivo da Inglaterra na concorrência entre as grandes potências econômicas ocorre de forma similar na eurozona. Basta salientar, de passagem, uma coisa muito importante relacionada a esse fato: a política estadunidense do “strong dólar” [dólar forte] no período recente foi importante apoio para a recuperação das suas finanças públicas e reforço da superioridade do seu sistema bancário e de capitais sobre os concorrentes da eurozona. Os bancos norte-americanos emergiram do furacão de 2009 e os europeus continuaram imersos.  A crise cambial que se instala neste momento na Europa (com epicentro na libra) está intimamente relacionada também com a crise vivida atualmente pelos maiores bancos europeus (Deutsche Bank, etc.). Trataremos proximamente, em boletim especial, dos elementos do mercado de crédito privado que fundamentam esse apodrecimento do sistema bancário europeu.     

          O problema é daqui para frente: é bom não esquecer que a velha e até agora sólida libra esterlina (Pound) nunca foi uma moeda qualquer. E a City [1] é o segundo centro financeiro do mundo.  Segundo dados mais recentes do Bank for International Settlements (BIS) a libra é a quarta moeda do mundo pelo critério de média diária de giro de divisas no mercado cambial internacional. Do total destas transações (US$ 5.088 trilhões diários em 2016), que equivale grosso modo à liquidez global de divisas conversíveis, a libra participou com o montante médio de US$ 650 bilhões, participação de 12,77%, atrás apenas do US$ dólar (87.0%); euro (33.4%) e Japão yen (23%).[2] O chinês yuan, por exemplo, aparece com apenas 2,2% neste ranking das principais moedas mundiais, atrás do mexicano peso (2.5%). Uma curiosidade para a “elite branca” brasileira orgulhosa com a notícia do FMI nesta semana de que o Brasil voltará a ostentar em 2017 o título de 8ª economia do mundo. O real, essa coisa que parece moeda, nem aparece nesta lista do BIS.

Duas outras importantes observações. Primo: como se verifica com os números registrados no eletrocardiograma acima, a saída da Inglaterra da União Europeia (Brexit) não está na gênese da derrocada da libra. Ao contrário, o Brexit é uma expressão política determinada pela longa derrocada da libra iniciada em meados de 2014. Secondo: embora a Inglaterra nunca tenha aderido ao euro – moeda única da eurozona baseada em um currency board (sistema de câmbio fixo) com o marco alemão – a organicidade da libra e da City com o sistema financeiro e de capitais do velho continente é mil vezes maior que com qualquer outra área. Consequência: tanto o euro quanto o sistema bancário da eurozona não resistiriam a um colapso da libra e, consequentemente, da City de Londres.

REPERCUSSÕES POLÍTICAS – Devido a essa organicidade econômica e patológica os problemas ingleses sempre foram tolerados e absorvidos por Bruxelas e Frankfurt. Até o mês de junho deste ano, quando explodiu o Brexit. Agora tudo mudou. E antes que as consequências econômicas da desvalorização da libra se manifestem au grand jour [de maneira clara para todos] no continente, a crise aparece antes de tudo como um grande embate político entre as duas partes.

O Brexit é intolerável pela União Europeia porque ele significa novas dificuldades econômicas insuperáveis na atual situação de deflação global e proximidade de novo e potente choque global. O Brexit não pode ser absorvido economicamente pelo continente. De todo modo, procurava-se uma saída política para minimizar as perdas e danos. Até esta semana, ainda se procurava uma transição amigável entre os dois lados, pelo menos do lado de Bruxelas: procurava-se um softbrexit, uma “saída leve” e organizada.

Quem sabe com compromissos e mais tempo de preparação se pudesse evitar as piores consequências? Ledo engano! De repente, no último domingo (2/outubro), Mrs. Theresa May, nova primeira-ministra da Inglaterra chutou o pau da barraca. Revelou-se uma feroz defensora do hardbrexit [saída pesada].Em primeiro lugar, declarou que pretende apressar os trâmites de saída oficial da União Europeia: concluir tudo até o mês de março/2017. Sem nenhum compromisso com Bruxelas. Cada um para seu lado, cada um cuide de si. E disse mais: os possíveis prejuízos com o hardbrexit serão mais do que compensados com o fim das regra da União Europeia de entrada de refugiados na Inglaterra. Mrs. May não quer mais nenhum refugiado árabe ou africano pisando na Inglaterra. Mrs. May quer ser a nova Mrs. Thatcher.  É quase uma declaração de que, para se safar de sua crise econômica e social, desemprego, etc., a Inglaterra vai jogar o jogo pesado de arruinar seus vizinhos. É quase uma declaração de guerra ao continente, ou pelo menos àqueles que ainda permanecerem na União Europeia, nas barras da Alemanha.

A resposta do bloco às declarações de Mrs. May veio através do anão François Hollande, presidente da França, ecoando a posição de Berlim a respeito do assunto e, também, diga-se de passagem, muito preocupado que a população francesa exija muito breve nas ruas de Paris a Francexit: “ É preciso que haja uma ameaça [à Inglaterra], é preciso que haja um risco, é preciso que haja um preço, senão estaremos em uma negociação que poderá não terminar bem e que, forçosamente, terá consequências econômicas e humanas”, lançou o chefe de Estado francês em Paris. E concluiu solenemente: “O Reino Unido decidiu fazer um Brexit, eu diria mesmo um “Brexit dur”. Muito bem, vamos até o fundo da vontade dos britânicos de sair da União Europeia” (Le Monde, 07/Outubro/2016).

Os dados estão lançados. A nova crise política entre Inglaterra e União Europeia é um fato que pode pesar na explosão do já maduro novo choque cíclico global.  A nova situação econômica e política da Europa – incluindo a Inglaterra, do mesmo modo que Rússia, etc. – nos próximos trimestres é irreversível. A magnitude e consequências da crise entre Inglaterra e União Europeia são imprevisíveis. Mas, com os novas mexidas de peças no tabuleiro econômico e político na região, terá grande chance de ganhar quem apostar que a área europeia tornou-se uma fortíssima candidata a ser a primeira a explodir no choque global que atingirá todos os mercados mundial nos próximos trimestres.

 

[1] City é como é chamado o distrito no centro de Londres onde se localizam importantes Bolsas de Valores, de Mercadorias, de Metais, etc., assim como as matrizes ou sedes de numerosos bancos comerciais, financeiros, corretoras, etc. de todo o mundo. É aqui que é estabelecida, por exemplo, a importante London Interbank Offered Rate (ou LIBOR), uma taxa de referência diária, calculada com base nas taxas de juros oferecidas para grandes empréstimos internacionais.

[2] Porque duas moedas nacionais (ou divisas) são envolvidas em cada transação, a soma das porcentagens de participação de moedas individuais totaliza 200 %.