O caminho de Damasco é pavimentado de traiçoeiras armadilhas. Intransponíveis armadilhas. Quase dois anos atrás, o experimentado chanceler russo Sergei Lavrov ensinou direitinho essa lição de geopolítica para John Kerry, chefe do Departamento de Estado norte-americano, e seu pau mandado Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel. Parece que os dois responsáveis diretos pela desastrada aventura militarista (e de terrorismo de Estado) na região não acreditaram na sábia advertência de Lavrov. Ou não entenderam a que ele se referia, o que é mais provável. Agora, com as labaredas do conflito atingindo o coração da Europa, são obrigados a cortejar Vladimir Putin e pedir que ele ajude a apagar o fogo do mais novo genocídio imperialista no Oriente Médio. Mais de 250 mil assassinatos desde 2015 cometidos pelos EUA, seus aliados europeus e Israel. E a maior diáspora árabe na idade moderna de outras centenas de milhares de refugiados da guerra e da fome que se espalha como epidemia incontrolável na margem de baixo do Mediterrâneo.
O Departamento de Estado norte-americano já avisou que não se opõe a que Moscou, enquanto negociador experimentado, assuma o papel de líder na solução da crise síria: “Moscou emerge rapidamente como o centro da diplomacia na guerra de quatro anos da Síria, com a administração de Obama enviando importante emissário à capital russa discutir o conflito na sexta-feira, depois de visitas recentes a Moscou de funcionários de alto-escalão sauditas, jordanianos, e iranianos, assim como importantes dirigentes da oposição política síria” (The Washington Times, 28/Agosto/2015).
Observa-se nas últimas semanas um frenético vai-e-vem de dirigentes de diversos países do Oriente Médio, e mesmo de opositores sírios. Só faltou aparecer alguém do Estado Islâmico. O rei Abdallah II, da Jordânia, por exemplo, quando de sua recente visita a Vladimir Putin, salientou que o papel da Rússia é de importância vital para reaproximar as partes em conflito e colocá-las na mesa de negociação. Além de tudo, a Rússia tem um poder especial para defender (e impor) sua posição sobre o acordo na Síria. Esse trunfo geopolítico, observa também Washington Times, é a reputação de Moscou enquanto negociador confiável com Irã e Hezbollah, partidários do regime de Bashar el-Assad, e participantes ativos do conflito, em conjunto com o exército russo, que agora aumenta notavelmente sua presença no campo de batalha.
Por falar em Irã e Hezbollah, quem completou a romaria de líderes mundiais à Moscou, nesta segunda-feira (21) foi nada menos que o terrorista Benjamin Netanyahu, em pessoa, para se inclinar frente ao todo poderoso Putin. “Era muito importante vir aqui para esclarecer nossa posição e fazer todo o possível para evitar mal-entendidos entre nossas forças” disse Netanyahu, antes do início da reunião no Kremlin. Netanyahu, que não tem o hábito de viajar ao exterior, estava acompanhado por várias autoridades militares e de inteligência, além de fortíssimo esquema de segurança.
Para salvar a cara de Netanyahu, a imprensa israelense diz que o objetivo de sua visita a Moscou é evitar possíveis colisões de aviões russos e israelenses que poderiam sobrevoar a Síria. Diz que os militares do Estado terrorista de Israel temem que a presença russa na Síria dificulte uma possível resposta de Israel ao Irã, pais que acusam de armar o Hezbollah através do território sírio. Isso é mentira. Israel está enfraquecido, principalmente diante das potências europeias, depois de sua desastrada aventura de criar (junto com os serviços especiais dos EUA) o Estado Islâmico e provocar uma situação militar incontrolável que agora já abala a própria segurança política e social europeia. Muita gente considera a crise dos refugiados na Europa como uma ameaça muito maior à zona do euro do que a crise da moeda única de dois anos atrás, momentaneamente interrompida pela súbita recuperação cíclica da produção no velho continente.
O problema de fundo no Oriente Médio se resume na crescente ingovernabilidade imperialista na região. Esse processo corrosivo iniciou com a derrotada “primavera árabe” e agora se agrava com a falência da economia do petróleo, diminuição da circulação de capitais e de investimentos em todos os países da imensa área que envolve o Próximo Oriente e norte da África (acima do Saara). A grande mudança da politica externa global dos EUA consiste em deslocar grande parte das suas forças militares estratégicas da região em direção à Ásia, onde os problemas da China e do rearmamento japonês são muito mais importantes para a governabilidade imperialista global de Washington.
É para isso que a aliança com Moscou nesta área no período recente foi crucial para Washington. Aqui começam os problemas reais. Em primeiro, a impossibilidade de os EUA garantirem para Arábia Saudita, Egito e Israel, seus grandes aliados tradicionais na região, que a mudança da sua politica com o Irã, Iraque, Curdistão e com o abandono da oposição política derrotada na Síria, não será o estopim para a derrocada de toda a estrutura de poder na região que perdura desde a fundação do Estado de Israel no pós-guerra. O poder financeiro dos EUA não é ilimitado para manter os mesmos gastos militares em uma área que não oferece mais perspectiva de curto e longo prazo das grandes vantagens econômicas do pós-guerra.
A organização do famigerado Estado Islâmico por Israel, Arábia Saudita e forças especiais do Pentágono foi uma reação do velho stablichment na região às mudanças ameaçadoras ao seu equilíbrio de forças provocadas pelas novas prioridades geopolíticas globais de Washington. É claro que esse problema da transição aparece também fortemente na política interna dos EUA. Mas também (e principalmente) na Europa, que fica cada vez mais vulnerável às turbulências crescentes no Oriente.
O fracasso da experiência do Estado Islâmico – assentado até nas raízes das nações europeias, com o recrutamento de jovens das classes médias e operárias europeias, abaladas pela falência do “Estado Social” do pós-guerra – consiste exatamente no agravamento de uma situação que agora transborda das fronteiras do oriente para as protegidas fortalezas da Alemanha, Áustria, França, etc., invadidas por hordas de famintos e bárbaros negros e pardos do fim do mundo da civilização. O problema dos europeus é o seguinte: a ingovernabilidade da maior região fornecedora de petróleo do mundo funde-se agora com a própria ingovernabilidade da zona do euro, momentaneamente abafada, como observamos acima.
Portanto, o reforço da presença militar da Rússia na guerra síria e o desesperado apelo de todas as partes para que a Rússia assuma o papel de líder na solução da crise é uma tentativa de se concertar e estabelecer um mínimo de governabilidade nas regiões que margeiam o caminho de Damasco. A primeira condição que Moscou certamente vai exigir de Estados Unidos e Israel (e em menor medida dos sauditas) é que eles desmobilizem imediatamente o Estado Islâmico. Isso talvez seja a parte mais fácil das negociações. O mais difícil virá depois.